terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Em 1999, Brasil perdia R$1 bilhão por dia e FHC foi para a praia.

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Estressado, FHC vive seu pior momento.

Josias de Souza, via Folha de S.Paulo de 17/1/1999.

Tucano reclama da falta de informação para agir e de pessoas com quem possa trocar ideias sobre o país.

Fernando Henrique Cardoso escolheu parte dos apetrechos que queria ver acomodados em sua mala: bermudas, camisetas, sandálias… Parecia finalmente decidido a seguir as instruções de Roberto Camarinha, o médico da Presidência da República.
Às voltas com um diagnóstico de estresse, repousaria por seis dias em um recanto paradisíaco do litoral de Sergipe. Ria-se do nome: praia do Saco. Mas se mostrava embevecido com a descrição que o governador Albano Franco lhe fizera do lugar.
Ao decolar de Brasília, na manhã da última terça-feira, o presidente estava animado com a perspectiva de repouso. Um único compromisso o separava do paraíso sergipano. Faria escala no Rio, para inaugurar o centro gráfico de O Globo.

No banheiro

Nem bem aterrissou no Galeão, foi logo alcançado por Pedro Malan. O ministro da Fazenda discou de Brasília. Cercado de ministros, observado pelos presidentes do Senado, Antônio Carlos Magalhães, e da Câmara, Michel Temer, FHC buscou privacidade no banheiro da sala de autoridades da ala militar do aeroporto do Rio.
Assim, ao lado de uma pia, começou a gorar o descanso que planejara havia mais de um mês. Em vez do repouso prescrito pelo doutor Camarinha, viveria dali em diante o que definiu como alguns de seus piores momentos.
Em nenhum outro instante experimentou no governo uma fase de tais extremos, em que a sensação de poder se mistura à de impotência. Tonificado pela reeleição, parece mais frágil do que nunca.
No discurso de posse, há 17 dias, recusou o papel de gerente da crise. Mas, segundo a definição de um amigo, tem hoje o cotidiano gerido por ela.
Malan telefonou justamente para informá-lo sobre a deterioração do ambiente econômico. O governo talvez tivesse de antecipar a desvalorização do real, algo que era programado para março.
Pensou em retornar a Brasília. Foi desaconselhado. Imaginou-se que a informação de que voltaria à capital antes do previsto, às pressas, pudesse levar pânico ao mercado, açulando ainda mais a fuga de dólares. Assim, decidiu voar para Sergipe, embora soubesse que teria de regressar no dia seguinte.
Antes de seguir para o compromisso do Rio, levou o celular uma vez mais ao banheiro do Galeão. Pediu ao governador Albano Franco que não o esperasse em Aracaju (SE). Preferia que se juntasse aos governadores que, reunidos em São Luís, condenariam dali a algumas horas a moratória mineira de Itamar Franco.

Tensão e amargura

A crise do real pôs fim, ainda que momentaneamente, ao lendário bom humor de FHC. Não é de hoje, aliás, que, aos olhos de amigos e auxiliares, o presidente está diferente.
Era capaz de encaixar uma blague nos diálogos mais graves. Era do tipo que perdia o amigo, mas não perdia a piada. Mas mudou. Anda tenso, amargurado, queixoso.
Reclama de não dispor de boa informação para agir. Pragueja políticos à sua volta, dados a picuinhas. Maldiz o ex-aliado Itamar Franco, a quem qualifica de estopim da atual turbulência. Sente falta de pessoas com quem possa trocar ideias sobre o país.
Diz-se que tem saudades de ex-auxiliares. É incansável na exaltação das qualidades de André Lara Resende, expurgado do governo pelo grampo do BNDES. Ele o quer de novo governo. Fará o que for preciso.
O exílio de seis dias na praia serviria para recarregar as baterias. Mas o telefone não o deixou em paz na noite de terça-feira. Levou consigo, além de bermudas e chinelos, dois “grandes papos”: Leôncio Martins Rodrigues, um cientista político que o conhece desde os tempos do exílio no Chile, e Valter Pécly, um expansivo diplomata que chefia o cerimonial da Presidência.
Chegou a ensaiar um carteado. Mas foi interrompido algumas vezes –ora por Malan, ora por Clóvis Carvalho (Gabinete Civil). Sugado pela realidade, definiu com Malan o índice de desvalorização do real frente ao dólar.
Recomendou ao ministro que visitasse ACM. Malan se fez acompanhar de Pedro Parente, seu secretário-executivo. Os dois chegaram à residência oficial do presidente do Senado por volta de 22 horas. Encontraram a mesa posta. Jantaram com o anfitrião. Enquanto comiam, revelaram as providências que seriam divulgadas na manhã seguinte. Falaram inclusive sobre a saída de Gustavo Franco.

O Congresso

O momento é decisivo, disse Malan a ACM. O papel do Congresso seria vital. A eventual rejeição do minipacote fiscal do governo traria, segundo Malan e Parente, consequências nefastas para a economia do país. A votação estava prevista para a tarde do dia seguinte. Ocorreria horas depois do anúncio da desvalorização do real e da saída de Gustavo Franco.
Perto da meia-noite, Malan e Parente voltaram para o Ministério da Fazenda. O ministro discou para FHC. ACM ajudaria, informou.
O senador foi para a cama preocupado. Impressionava-o o fato de ter viajado na tarde daquele mesmo dia com um impenetrável FHC, cujo semblante não permitia perscrutar a eletricidade que cortava os subterrâneos de Brasília.
Durante boa parte do voo até o Rio, ACM dividira com FHC e o deputado Michel Temer a cabine presidencial do avião da FAB. Falaram sobre amenidades e sobre a tramitação dos projetos de interesse do governo no Congresso, entre eles a renovação da CPMF. Nada sobre a crise.
Às 7 horas de quarta-feira, já pendurado ao telefone, ACM conversava com os líderes partidários. Fez e refez contas. Perto de uma da tarde, telefonou para FHC. “Vai passar”, disse, referindo-se ao pacote do governo, de fato aprovado pouco depois.
A votação trouxe alívio a FHC. As informações que havia recebido ao chegar ao Planalto, de volta da praia do Saco, eram desoladoras. Tomara banho de mar e passeara de bugue antes de embarcar. E já estava uma pilha.

Fuga de dólares

Temia pelo futuro do real, àquela altura já desvalorizado por ato de Francisco Lopes, o novo presidente do Banco Central. Em contatos com os amigos, entre eles o ministro Paulo Renato (Educação) e o governador Tasso Jereissati (Ceará), revelava o temor de que pudesse ocorrer uma fuga expressiva de dólares.
Com base em informações da área técnica do governo, FHC estimava que a onda especulativa poderia sorver, só naquele dia, algo como US$5 bilhões das reservas em dólar do governo. A cifra terminou não se efetivando.
Em uma segunda tentativa de relaxar, FHC foi, de helicóptero, para sua fazenda, em Buritis. De novo, levou Leôncio Martins e Valter Pécly. Houve nova frustração. As más notícias invadiram o novo refúgio do presidente. Chegaram pela tevê, pelo telefone.
Ele se irritou ao saber que o pedido de demissão de Cláudio Mauch, diretor do Banco Central, injetara uma dose extra de insegurança no mercado. Não entendia as razões que o levaram a se demitir em meio à turbulência.

Alívio

Após trocar uma série de telefonemas, autorizou Malan a interromper a derrama de dólares das reservas do Banco Central no mercado. O câmbio, sempre tão dogmático, flutuaria livremente, num teste ousado.
De volta ao Alvorada, FHC reuniu os auxiliares econômicos e, na tarde de sexta-feira, parecia aliviado com o êxito, ainda que parcial, da estratégia. Parecia tentado a evitar uma nova fixação de limites para a variação do dólar.
No final do ano passado, FHC disse a algumas pessoas que 1999 seria o pior ano de seus dois mandatos. No último dia 4 de janeiro, após almoço em que recebeu cumprimentos de autoridades estrangeiras, lamentou não ter incluído em seu discurso de posse uma frase sobre as turbulências que o país ainda enfrentará. Teve receio de ser demasiado pessimista.
O presidente parece convencido de que atravessa a quadra mais delicada de sua passagem pela Presidência. E seus amigos, sob reserva, revelam-se preocupados com o seu estado. Acham que está excessivamente isolado.
Temem que, no instante em que conhece os seus mais altos desafios, num momento em que deveria esgrimir as suas qualidades máximas, o presidente se deixe abater.
Em resposta, FHC prepara para o início da semana movimentos que, imagina, reforçarão a impressão de que seu governo e ele próprio reúnem condições para superar a crise.

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Mesmo estressado, FHC foi beijar a mão de Roberto Marinho.

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