sábado, 18 de julho de 2015

As primeiras roubalheiras ninguém esquece.

PEDRO-HUMOR

Por Apollo Natali*

Todo homem é fraco e ladrão, disse o primeiro governador geral do Brasil Tomé de Souza. Está nos Ditos Portugueses Dignos de Memória. Filho bastardo do abade João de Sousa, que não levava a sério o celibato e teve sete – Tomé, nada fraco, tratou de embolsar adiantados seus salários de 400 mil reais por ano ao ser nomeado governador. Cada burocrata que vinha ao Brasil exigia do rei salários adiantados. Havia o real e o cruzado.Um utilizado pela população no dia-a-dia e o outro para grandes transações monetárias. Pesando 3,5 gramas de ouro, o cruzado valia 400 reais.
Mesmo no vermelho, foi o dinheiro da coroa que sustentou a instalação de um governo militar no Brasil, chamado de Governo Geral, para tomar posse da terra definitivamente, defendê-la contra invasores, principalmente franceses, cobrar impostos e aplicar a justiça real no Brasil. Até 1549, a então Terra de Santa Cruz vivera sob o signo do arbítrio. Por sugerir ao rei João III o envio de governadores gerais, o conde da Castanheira, Dom Antonio de Ataíde, foi considerado o homem que mudou o Brasil. João III é chamado o colonizador do Brasil. Duarte da Costa, acusado de corrupção, foi o segundo governador e Mem de Sá, acusado de corrupção, o terceiro.
Acompanharam Tomé de Souza em sua viagem ao Brasil, entre outros letrados, Antonio Cardoso de Barros, primeiro provedor-mor da Fazenda do Brasil, nosso primeiro ministro da Fazenda, pois, burocrata da Casa dos Contos em Portugal e donatário da capitania do Ceará, acusado de corrupção por desvio de dinheiro do Tesouro Régio; Pero Borges, primeiro ouvidor-geral do Brasil, ex-corregedor de Justiça e desembargador, acusado de corrupção, por desvios do dinheiro do Tesouro Régio. Meteu no bolso 114.064 reais das obras de um aqueduto. Apesar de ficha suja, foi nomeado ouvidor e sua mulher Simoa da Costa, ganhou do rei pensão anual de 40 mil reais; D.Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil, acusado de corrupção e criador de uma onda de indignação por cobrar dos fieis pela absolvição dos seus pecados. Estimulava mesmo a prática do pecado para cobrar a absolvição. Os próprios pecados o bispo Sardinha os pagou no litoral da Paraíba, no naufrágio de seu navio Nossa Senhora da Ajuda, rumo a Portugal. Todo seu ouro foi por água abaixo e Sardinha foi devorado pelos caeté. Vieram também Fernão Pires, padre degredado para o Brasil, assassino confesso e um dos principais aliados de Sardinha, acusado de corrupção; Gomes Ribeiro visitador da costa do Brasil, acusado de corrupção.
Com Tomé de Souza aportou aqui uma intrincada teia de um funcionalismo público ineficiente e corrupto dotado da voracidade de um sistema tributário pesado e injusto.As autoridades judiciárias e fiscais que, a partir de março de 1549, iriam desembarcar no Brasil com a missão de instalar o Governo Geral, enquadravam-se no perfil de governo que se exercia em Portugal. Embora recebessem altos salários, burocratas engordavam seus rendimentos com propinas e desvio de verbas púbicas. A máquina administrativa não era apenas ineficiente, mas corrupta. O número de funcionários destacados para cumprimento de qualquer função revelava-se, na maioria dos casos, bem superior ao necessário para a realização do trabalho. Os oito navios da armada de Tomé de Souza traziam em seus assoalhados mais de 500 expedicionários, entre burocratas, marinheiros, soldados, degredados, serviçais.
E a 1º de maio de 1549 iniciam-se as obras da construção da cidade de Salvador, a primeira cidade brasileira feita com planejamento, licitação e contratação de empreiteiras. Parte dos 120 milhões de reais gastos na construção foi desviada. Eram oito ruas retas perpendiculares e transversais, com praça central, igreja, prédios para os governantes, cadeia, tudo em pau a pique cobertos com folhas de palmeiras e bem mais tarde com telhas. Salvador foi erguida com os esforços de artesãos, pedreiros, indígenas, degredados, e os orelhados. A esses, cortaram-lhe as orelhas em Portugal como forma de identificação do tipo de crimes que cometeram. Artesãos, um punhado deles, cujas habilidades eram indispensáveis à construção da nova cidade, eram comandados pelo mestre de obras Luis Dias, arquiteto de renome, décano dos arquitetos brasileiros, responsável pelo projeto da primeira capital do Brasil, que não pediu adiantado seus salários e nunca os recebeu, vivendo de escambos no Brasil.
Todo o meio milhar de viajantes que lotaram os navios da expedição de Tomé de Sousa recebiam salários, entre 360 a 1.200 reais, burocratas, marinheiros, pilotos, grumetes, pajens, soldados, estes em número de 600, degredados, 400 deles, obrigados a perambular nus pela colônia, portanto sem bolsos para guardar seus salários de 330 reais. Além da alimentação, todos ganharam um litro e meio de vinho por dia na viagem. Em 1º de novembro de 1549 a festa de Todos os Santos marca a inauguração informal da primeira capital do Brasil. Dois anos depois, o número de funcionários era tanto – “folgam todo o tempo”, disse Tomé de Souza – que houve necessidade de pôr ordem na casa. Fundiram-se cargos e extinguiram-se outros.
Com o segundo governador geral, Duarte da Costa acusado de corrupção, vieram, entre outros acusados de corrupção, seu filho Dom Álvaro da Costa, acusado de corrupção.Tido como um dos mais incompetentes governadores, apesar dos concorrentes, Duarte da Costa cuidou apenas de seus lucros. Temia-se que destruísse o pouco que estava feito por Tomé de Sousa e que favorecesse mais ainda os pecados e vícios do primeiro governo. Cobrava um imposto compulsório de quem o processasse. Nada fez para deter os franceses que se espalhavam por toda a costa do Brasil.
Duarte da Costa Deixou a mulher em Portugal e preferiu trazer seu filho Álvaro da Costa, jovem e galanteador guerreiro em África que formou com seus amigos um bando de arruaceiros em Salvador permanentemente dispostos a intimidar pela força das armas ou do atrevimento quem quer que ousasse se interpor em seu caminho. Apedrejavam casas e telhados. Álvaro dormia com mulheres casadas. Ganhou do pai uma capitania. Quem pagou por desvios de verbas foi o escrivão Rodrigo de Freitas, que cumpriu 4 anos de prisão. No auge do confronto entre Duarte da Costa e o bispo Fernandes Sardinha, um sempre acusando o outro de corrupção, os tupinambás atacaram Salvador, quando 13 aldeias indígenas foram destruidas, e 3 mil indígenas foram escravizados, expulsos e mortos. Foi a Guerra de Itapuã.
Mem de Sá, o terceiro e último governador, foi um dos 13 filhos ilegítimos do cônego Gonçalo Mendes de Sá, que como se nota, também não queria nada com o celibato. Acometido de um mal chamado medo da pobreza, Mem de Sá tornou-se o homem mais rico do Brasil no século XVI e o mais acusado de corrupção. Preocupado com a crescente ambição do irmão, o poeta Sá de Miranda enviou-lhe poesias incitando-o a abandonar as tentações do Paço Real e gozar de sua liberdade em lugar tranqüilo.
Comandando uma única nau com 336 pessoas, Mem de Sá suportou oito meses menos dois dias de vissicitudes no mar até chegar a Salvador. Submetia-se aos exercícios espirituais dos jesuítas, que incluíam autoflagelação. Com os rigores da lei reservados aos indígenas rebeldes, Mem de Sá deu início a uma administração rígida e moralista, proibiu o jogo, a vadiagem, a embriaguez e as visitas dos colonos às aldeias. Baniu a antropofagia entre os indígenas que viviam próximos a Salvador, forçando-os a viver em aldeamentos sob controle dos jesuítas. Tratou de encurtar as demandas judiciais e aplacar antigos ódios. Também forçou os funcionários públicos a trabalharem mais.
Mem de Sá inclusive providenciou uma devastadora ofensiva contra as tribos insurretas do Recôncavo, ao fim da qual, restavam na imensa mata, 160 aldeias incendiadas, mil casas arruinadas pelo fogo, campos assolados e tudo passado a fio de espada. Calcula-se que pelo menos 6 mil indígenas tenham sido mortos ao longo da chamada Guerra de Paraguaçu. Os massacres perpetrados em setembro de 1558 foram uma espécie de preliminar revelando com que ferocidade e disposição Mem de Sá iria tratar da expulsão dos franceses instalados no Rio de Janeiro, embora aquela guerra fosse se prolongar por uma década e lhe custasse as mortes de um filho e de seu sobrinho predileto.
Os navios dos governadores não trouxeram mulheres e a tirania do impulso sexual deixou colonos e nativos sem saberem para onde correr. Andavam nuas e depiladas, as nativas, e se ofereciam. Os padres participavam do banquete da carne. Por conseguinte, filhos e mais filhos bastardos passaram a povoar a Baia de Todos os Santos que passou a ser chamada de Baia de Todos Os Pecados. Os ruídos que mais se ouviam era o balançar das redes. E assim, compulsivamente, por imposição da mãe natureza, se fez a miscigenação. E quem quiser saber mais e com pormenores sobre as primeiras e inesquecíveis roubalheiras da infância do Brasil, e de que maneira se relacionavam homens e mulheres sob o jugo do impulso sexual, leiam A Coroa, a Cruz e a Espada, do historiador Eduardo Bueno, Editora Objetiva.
*Apollo Natali é jornalista, formado aos 71 anos, depois de 4 décadas atuando na imprensa. É colaborador do “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna Desabafos de um ancião”.

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