terça-feira, 8 de março de 2016

A ilusão do relato, a verdade do inferno - Moro reforça sua estratégia: impor prisões preventivas prolongadas e realizar operações espetaculares usando promotores e forças especiais.

Wikimedia Commons


Martín Granovsky


O discurso de Mauricio Macri, na terça-feira que iniciou o mês de março, elevou a níveis mágicos a palavra “relato”. O uso da força pública e a captura de Lula durante quatro horas, na sexta-feira 4, mostrou melhor a verdade: a política na América do Sul enfrenta o inferno dos ciclos econômicos, as oscilações da visão popular, a capacidade das forças políticas para entender a correlação de forças, e precisa da lucidez para mudar e recuperar a chance de voltar aos eixos. Desse inferno não se salva nem mesmo aquele torneiro mecânico nordestino que, depois de 500 anos de história, impulsionou a ascensão social em massa de 40 milhões de pobres, cumprindo com seu objetivo de três refeições diárias para todo um povo, devolvendo a autoestima a setores relegados desde o escravismo.

Durante alguns dias, ficou a sensação de que a chave está em como se contam as coisas. Se Macri não considerasse a herança recebida como um passado maldito, segundo alguns dos seus partidários, não poderia justificar o dólar a 16 pesos ou a inflação de 40%. Perderia legitimidade.

A análise parte da versão de que existiu, e existe, um relato mentiroso – o de Cristina – e que era preciso derrotá-lo com a instalação de outro novo, sincero e cristalino.

No fundo, há uma ideia pré-política, ou antipolítica. Defender a política como algo negativo, mas a disputa deveria tirar as máscaras. A realidade seria só um reflexo do mundo das palavras. A manipulação manda e os fatos obedecem a ela. Quem expuser a manipulação e impuser suas mentiras vencerá.

Uma propaganda cristinista de pensamento básico afirma que basta mostrar que Macri tirou sua carapuça. Viram? É simplesmente um neoliberal. Os macristas, apaixonados pelo próprio relato, encontraram sua fórmula. Viram? Cristina era simplesmente uma impostora que destruía o Estado e aumentava a pobreza enquanto dizia fazer o contrário. Por outra parte, surge no macrismo um setor mais realista. “Se o Brasil espirra, a Argentina corre perigo de pneumonia”, disse a chanceler Susana Malcorra.

Não é que as narrativas, na política, sejam inúteis. Ao contrário. São a explicação do que um presidente quer. E, sem mentir, incluem certa exageração imprescindível. Mas o segredo da sua eficácia é, por um lado, a proximidade com a realidade, por outro, a empatia com os anseios sociais predominantes. A publicidade negativa funciona nas eleições, ainda que não seja a carta ganhadora. Para governar, só isso não adianta.

Néstor Kirchner não foi popular por sua denúncia contra o neoliberalismo dos Anos 90, e sim pelas políticas de crescimento do emprego ou pela mudança na Corte Suprema, e por sua narrativa de futuro: passar do inferno ao purgatório.

Apoiada na popularidade final de Néstor (70%,), após os primeiros quatro anos de ciclo kirchnerista, o ponto forte de Cristina Fernández de Kirchner em 2007 foi sua promessa de continuidade. Em 2011, Cristina era a presidenta que evitou a destruição da Argentina em meio a uma crise iniciada em 2008. Também era a chefa de um espaço político que, como o antropólogo Alejandro Grimson costuma recordar, congrega não somente os novos kirchneristas, mas também quase todos os peronistas, incluindo os representados por Hugo Moyano, Sergio Massa e José Manuel de la Sota, contra opositores desalinhados. Cristina foi reeleita. Logo, nenhuma narrativa posterior compensou o estancamento econômico, a inflação e a decomposição da aliança social e política originária. Mais longe ou mais perto do perigo real, o fato é que nem os fundos abutre e nem Héctor Magnetto, o todo poderoso diretor do Grupo Clarín, foram percebidos pelo povo como a causa de uma economia empobrecida ou o motivo superior de um combate no qual os argentinos deveriam deixar de lado seus objetivos módicos de melhora cotidiana. A candidatura de Scioli chocou, entre outras coisas, contra esse tom épico que não coincidia com os problemas de 2015, contra sua própria gestão na Província de Buenos Aires, contra sus escassa vocação de liderança e contra uma aliança social mais frágil.

A política às vezes é como os carros velhos. O castigado Renault 12, com 30 anos nas costas, é suficiente para um taxista cumprir com suas corridas dentro do bairro. Se o levasse a uma expedição de Buenos Aires a alguma província vizinha apareceriam, uma após uma, todas as suas debilidades.

É que ter tudo sempre não é possível. Se a economia não cresce, se decresce ou se cresce pouco. Se isso se mantém durante dez anos com a mesma força política no governo. Se essa força não sabe, não pode ou não quer se reciclar. Se tudo isso acontece ao mesmo tempo, adeus futuro. Se os conservadores tiverem sucesso na tentativa de dividir a sociedade e, em vez de se livrar do cerco, os progressistas aceitam a crise e a estimulam, e depois não são capazes de reverter a nova correlação de forças, tchau esperança. Acontece o mesmo com a corrupção. Por si mesma, é algo ruim. O financiamento ilegal da política está mal. Desviar dinheiro público é algo condenável, mas é muito pior quando isso reduz a margem de manobra por efeito da crise econômica. Não está escrito em nenhum lugar que os novos governos conservadores, como o argentino, estejam isentos dessa equação. Até os governos da Bolívia e do Uruguai, os menos questionados por assuntos de corrupção na América do Sul, sofrem hoje um desgaste pelas relações de Evo com uma ex-mulher e a suposta aparição de um filho, e pelo descobrimento de supostas irregularidades no currículo do vice-presidente uruguaio Raúl Sendic.

Num trabalho notável, publicado em dezembro de 2015 pela revista brasileira Piauí, sob o título de “O lulismo contra as cordas”, André Singer, ex-porta-voz de Lula, prognosticava: “desde a perspectiva popular, a associação intuitiva entre o desvio de dinheiro público e a queda no ritmo de atividade econômica pode gerar um efeito devastador nas urnas em 2016 e 2018”.

Este ano, o Brasil terá eleições municipais. As previsões indicam que perderá na principal cidade do país: São Paulo, onde o prefeito Fernando Haddad é do PT. Em outubro de 2018 se realizará o pleito presidencial.

Lula é um alvo móvel, porque Washington resolveu que seria assim? Se não Washington, um setor da inteligência estadunidense? A Casa Branca decidiu que é hora de terminar com a era iniciada entre 1999 e 2007, por Hugo Chávez (1999), Lula (2003), Néstor Kirchner (2003), Tabaré Vázquez (2005), Evo Morales (2006), Michelle Bachelet (2006) e Rafael Correa (2007)? O copyright de um método que se baseia no desenvolvimento de um Poder Judiciário convertido em facção, a articulação e aparelhagem dessa Justiça, por parte dos grandes meios de comunicação e partidos da oposição, o estímulo ao núcleo das finanças internacionais e às elites domésticas, porque desse modo supõem que cortarão pela raiz qualquer suspeita de renascimento popular –, será que tudo isso tem origem nos Estados Unidos?

As perguntas podem ser lícitas, mas nem a teoria conspirativa nem o registro de uma conspiração verdadeira responderão outra pergunta: por que um plano desse tipo teria sucesso agora, se não teve antes, a não ser em países pequenos como Paraguai e Honduras?

Talvez se prefira outro método de trabalho. O processo geral iniciado em 2003 mostrou as insuficiências e as práticas equivocadas naquele momento, e teve reflexo no momento político e na economia que o país antes sofria.

Singer compara o começo do mandato de Lula com o início de um ciclo de Estado de bem-estar, pleno emprego e aumentos salariais, ao estilo do que se iniciou nos Estados Unidos na gestão de Franklin Delano Roosevelt, em 1933, e que durou pelo menos 30 anos. Para Singer, o lulismo é um ciclo de reformas em conta-gotas e por acumulação, e que, por isso mesmo, precisa um horizonte de décadas por diante para chegar ao seu objetivo. No dia 31 de dezembro de 2010, Lula encerrou o seu segundo mandato com 80% de aprovação, 7,5% de crescimento, 5,3% de desemprego e um salário mínimo 54% maior que o do seu primeiro dia de governo. Enormes massas de brasileiros conseguiram pela primeira vez ter a sua casa própria, um carro, conseguiram ir ao dentista, fazer uma viagem de avião, ter um diploma universitário.

Em seu primeiro mandato, Dilma Rousseff ampliou os planos sociais, reduziu a taxa de juros e conseguiu terminar o governo com um salário mínimo 72% mais valorizado que o de dezembro de 2002, quando terminou o governo de Fernando Henrique Cardoso. Apesar da disputa voto a voto, ela conseguiu sua reeleição em outubro de 2014. Porém, dias depois anunciou que entregaria o Ministério da Fazenda de seu segundo mandato ao economista Joaquim Levy, um austericida empregado del setor financeiro. Singer descreveu esse movimento dizendo que “o lulismo se transformou num boxeador que perde suas defesas”.

O primeiro mandato de Dilma, segundo Singer, foi marcado por medidas audazes, mas que, necessitavam de um crescimento de 5% para serem sustentáveis, enquanto o mundo já afrontava a crise financeira de 2011 e enveredava novamente para o caminho do neoliberalismo como saída global. Seu então ministro Guido Mantega desafiou os bancos e reformou o sistema elétrico com subsídios para a indústria. A reação contra Dilma e Mantega foi violenta, em diversos setores: na imprensa, entre os empresários transnacionais que antes celebravam o milagre brasileiro, nos bancos e, paradoxalmente ou não, entre os grandes empresários industriais paulistas, que estavam entre os beneficiários da medida.

O segundo mandato não fez uma correção suave, e sim um giro de direção. Levy deu uma virada brusca e regressiva na política econômica, que levaram o governo a perder o apoio de suas bases e a legitimidade para enfrentar os problemas políticos. Esse mesmo governo, segundo Singer, reagiu então erraticamente, querendo atacar “em tom jacobino, comprando muitas brigas ao mesmo tempo”.

Em 2015, o PIB caiu 3%, o salário real decresceu e a inflação chegou a 10%. A base do PT ficou paralisada.

Nessa conjuntura, o juiz Sérgio Moro, o mesmo que ordenou a detenção de Lula na sexta-feira (4/3), avançou com a Operação Lava Jato, com a ilusão de se tornar a réplica brasileira da Operação Mãos Limpas, realizada nos Anos 90 pelos promotores italianos. Naquela ocasião, a Justiça destruiu todo um sistema de propinas em obras públicas e fulminou alguns dirigentes políticos tradicionais da Itália, mas não atingiu todos os corruptos, e ao mesmo tempo abriu caminho para a era de Silvio Berlusconi no poder no país.

Entusiasmado pelo humor popular, que vai do individualismo a posturas cada vez mais conservadoras, Moro reforça sua estratégia: impor medidas que vão de prisões preventivas prolongadas, para favorecer a “delação premiada” dos réus (como quer fazer Macri na Argentina) e realizar operações espetaculares usando promotores e forças especiais, ajudado por uma Polícia Federal cujo aparato de inteligência o PT nunca tentou desmantelar.

Singer escreveu em seu artigo, de dezembro de 2015, que no caso de juízo político contra Dilma ter sucesso e interromper o mandato da presidenta, isso poderia gerar um efeito de catarse. E que esse efeito, combinado com uma derrota eleitoral grave em 2016, produziria no lulismo o duplo estigma de se tornar o responsável pela crise econômica e o partido conivente com a corrupção. É o que está em jogo agora. É o que Lula quer evitar, prometendo que, já com seus 70 anos, enfrentará a batalha com mais força que um rapaz de 30.

Tradução: Victor Farinelli
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