segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Aos amigos que preferem Temer.


Por Ivan Hegen

O Brasil tem uma cultura punitiva que não coincide com a da maior parte do mundo. Uma pesquisa realizada em escala global empregou uma situação hipotética onde há nove pessoas culpadas e uma inocente, e o entrevistado tem que escolher entre a punição a todos ou a liberdade a todos. Ao redor do mundo, geralmente considera-se pior ter que punir um inocente, enquanto que aqui, considera-se mais injusto deixar escaparem nove culpados, mesmo que o inocente pague sem merecer. O julgamento do impeachment de Dilma Rousseff confirmou que a presunção à inocência não é um valor sagrado em nossas terras. À revelia de qualquer justificação jurídica, grande parte da população considerou que Dilma merecia punição, não apenas pelo pretexto fraco das pedaladas e decretos, mas por desvios na Petrobras ocorridos em sua gestão. Sentiu-se que era necessário destituí-la de maneira traumática, mesmo sem  prova substancial. O TCU absolvera Dilma de responsabilidade no caso Pasadena, o MPF e a perícia a inocentaram quanto às pedaladas, mas para o povo não pode haver benefício da dúvida, ela obrigatoriamente sabia dos desvios, foi conivente e precisava ser destituída por cumplicidade.
A condenação de Dilma é aquela capa sombria da Veja da véspera da eleição, com o título “Eles sabiam de tudo”. Nunca ficou comprovado que ela soubesse, tampouco se deu valor ao fato de que quando o escândalo veio à tona, Dilma agiu para desmontar o esquema. Por outro lado, FHC chegou até a confessar em sua autobiografia que soube de desvios na Petrobras, mas preferiu não mexer em vespeiro. Ninguém se escandalizou com a confissão do intelectual com ares de príncipe. Tampouco as sucessivas delações apontando para crimes graves de seu protegido, Aécio Neves, causaram a mesma comoção que ilações contra a guerrilheira que chegou ao cargo máximo do país. Tornou-se consenso de que os casos concretos de outros petistas tinham necessariamente de condenar Dilma por contaminação, mas não se constrangeram o suficiente com a mancha que representou Eduardo Cunha na condução do processo na câmara.
Eu me senti pessoalmente ofendido pela decisão do dia 31 de agosto no Senado, aliás ofendido não apenas com os senadores interesseiros ou com articuladores influentes. Para mim não está bem resolvido que várias pessoas que se consideram meus amigos tenham passado por cima do meu voto, tenham me relegado a uma espécie de sub-cidadão sem voz efetiva, em um processo mais político do que jurídico. Eu constatei, é claro, uma pressão imensa da grande mídia pela formação de um consenso antipetista visceral, uma persuasão constante pelo impeachment. Lamento, no entanto, que a opinião da mídia tenha se sobrepujado. Ao final, os repórteres contestaram apenas a manutenção da habilitação de Dilma Rousseff para cargos públicos, evitando comentários sobre a perda de um direito político básico: a cassação do meu voto e o de 54 milhões de eleitores sem justificativas consistentes.
Apesar da tentação ser muito grande, não julgarei os amigos que militaram fortemente pelo impeachment como julgaram a pessoa que aprenderam a odiar. Para esses meus amigos, não se poderia sequer cogitar no in dubio pro reo, mas eu lhes concedo o direito à inocência, ao menos até que se prove o contrário. Para milhões de brasileiros, não foi preciso prova de que Dilma sabia dos esquemas da Petrobras, mas eu farei um esforço para considerar possível um “apoio inocente” ao impeachment. A conjuntura é mesmo muito complexa e o PT errou o suficiente para enervar, mesmo assim,  acho pouco provável que os militantes antipetistas não soubessem dos motivos que tornam esta substituição de governo extremamente prejudicial ao país. Acho pouco provável que não soubessem que ajudavam a colocar no poder políticos ainda mais comprometidos com a corrupção do que a presidente destituída. Saber, nesse caso, significaria mobilizar-se por motivos bem menores que os da ética. As doses de machismo, de racismo, de homofobia e outros preconceitos podem variar, mas há ao menos uma constante da militância antipetista, que é a de um elitismo inflexível.
Minha hipótese pessoal é que apenas um a cada dez pró-impeachment seja de fato inocente, mas nem sempre posso provar quem é quem, então não seria justo me dirigir aos dez em tom acusatório. De todo modo, para cada comentário “sensato” com que me deparo, tenho dificuldade para crer que alguém possa ter se engajado ativamente sem refletir com o cuidado que uma transformação histórica mereceria. É penoso para mim supor que pessoas muito éticas tenham ido às ruas de camisa da CBF, que apenas lhes faltaram informação e reflexão sobre os 124 bilhões de dólares do Banestado. Ou que se tratou apenas de ignorância sobre o passado golpista de nossos principais meios de comunicação, da OAB, do STF e da FIESP, todos estes repetindo papéis já desempenhados em 1964.  E me soa ainda menos plausível que alguém muito ativo nas ruas e na internet  desconhecesse a ficha corrida dos principais articuladores do impeachment. Acho pouco provável que qualquer antidilmista muito empenhado tenha agido pensando no bem maior, mas na dúvida, não posso, a priori, concluir que o apoio a um dos momentos mais vergonhosos da História nacional tenha sido um apoio mal-intencionado. A rigor, pode, sim, haver inocentes. Podem existir muitos que não sabiam o que estavam apoiando, e não é correto acusar quando não há provas de que soubessem. Se eles agissem da mesma maneira com Dilma, não haveria impeachment.
O que eu acho muito grave é que, seja com plena consciência dos interesses de classe, seja de maneira mais inconsciente, a grande política tenha atropelado de maneira tão agressiva a pequena política das relações afetivas. Acredito que quase todo brasileiro conviva com ao menos uma pessoa próxima, por quem tenha estima e consideração, que neste momento se encontra no campo de batalha oposto. Colunas sobre comportamento, quadros na TV e peças publicitárias vêm comentando esta situação, que se tornou frequente. Não é gratuito avaliar que houve muitos casos de distanciamento, atrito e incompreensão nas relações sociais. Um dos lados pressionou pela retirada à força da validez da representação política do outro, levando à violação de um direito básico sem consentimento e sem o devido respaldo. Com isso, milhares ou milhões de pessoas que costumavam se querer bem, neste momento sentem-se decepcionadas umas com as outras, gerando um mal-estar entre as pessoas comuns, não apenas entre nós e os políticos. A tese que descreve o brasileiro como homem cordial, exposta no clássico Raízes do Brasil, torna-se obsoleta. Sergio Buarque de Holanda acertou que o aspecto emocional tende a interferir na política brasileira muito mais do que a razão ou as regras vigentes, mas não cabe em seu livro uma ruptura tão drástica com a cordialidade, em escala tão vasta.
O clima pós-impeachment é incerto, em diversos níveis. Aparentemente, haverá uma tentativa de apaziguamento geral, que envolverá um acordão entre os políticos, um provável freio na Lava jato e, por parte dos meios de comunicação, a criação artificial de uma atmosfera positiva. A grande mídia foi eficiente na alteração de humor das pessoas quando quis intensificar a crise, a ponto de causar dificuldades concretas para a recuperação econômica. Agora, pretende apostar em um cansaço natural e tentará encobrir os problemas mais profundos na nova gestão. Se vai funcionar, não é garantido, pois o ataque conservador será agressivo demais para conter protestos. Os movimentos sociais não permitirão sossego diante de reforma previdenciária, desmonte da CLT, desmonte do SUS, arrocho para servidores, sucateamento da educação, corte em programas sociais, entre outras rupturas. Além disso, a aparência de farsa do golpe não foi bem dissimulada, com a grande fragilidade jurídica do processo e a abundância de delações de crimes mais graves cometidos por quem assumiu o poder. A manipulação pesada da mídia nacional foi reiteradamente denunciada pela mídia internacional, que de maneira unânime desaconselhou o impeachment. O próprio Sérgio Moro terá dificuldade para simular isenção depois que devolveu o passaporte para a esposa de Eduardo Cunha, contrariando pedido do MPF.
Foi para tentar evitar o acirramento das tensões que Dilma Rousseff sugeriu uma saída digna, indicando apoio irrestrito à eleição presidencial antecipada. Nem mesmo isso a direita aceitou, demonstrando que infelizmente não é mais possível uma política de conciliação de interesses, apenas de enfrentamento.  O Brasil do homem cordial, que nunca foi mais do que um mito, já não serve mais sequer como fachada, deixou de camuflar a luta de classes. O que está rachando o país é a divisão de classes, após treze anos da tentativa petista de atender tanto aos mais pobres quanto aos mais ricos. O que eu mais lamento é que esta luta de classes não seja dos 99% da população contra o 1% de magnatas, um desdobramento que me pareceu possível durante uma semana ou duas, em junho de 2013. Não sei até que  ponto é inteligente para a classe média estar do lado do patrão no momento mais agressivo do neoliberalismo, pois se mantivéssemos a união das jornadas de junho, aumentaríamos o poder dos cidadãos, contra a velha política como um todo. Infelizmente, a campanha antiesquerdista foi tão longe que colocou pessoas que se afeiçoam umas contra as outras, a ponto de cometerem uma injustiça histórica – não apenas contra a eleita, mas contra o direito dos eleitores. Também não sei se algum pacto ainda é possível, tenho sérias dúvidas quanto a isto.
 Sinto muito pelo artigo em tom seco e duro, mas silenciar equivaleria a adoecer.
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