terça-feira, 6 de setembro de 2016

'Assim começam as ditaduras' - As primeiras ações de Temer como presidente efetivo demonstram que o uso desproporcional da força pública é um procedimento que se tornou comum.

Cachorro Morto - Mídia Ninja

Darío Pignotti, de Brasília


As “ditaduras” e o “terrorismo de Estado” podem ser gerados e geridos por civis ou por militares, disse Dilma Rousseff durante entrevista com correspondentes estrangeiros, convocada dois dias depois de ter sido destituída pelo Senado. Foi um alerta expressado sem estridências, após ter observado alguns sinais inquietantes da nova administração.
 
Em declarações anteriores, ela já havia qualificado a administração de Michel Temer como “golpista”, “fraudulenta” ou “intrusa”, mas esta foi a primeira vez em que ela advertiu que este novo regime pode enveredar para uma espécie de “ditabranda”.
 
Efetivamente, as primeiras ações concretas ocorridas após a posse de Temer demonstram que o uso desproporcional da força pública passou a ser um procedimento comum em vários estados de forma simultânea. A ideia é reprimir protestos pacíficas apelando a pretextos como a presença de provocadores da agrupação “black blocs”. Curiosamente, a polícia assiste impávida as ações desses grupos minoritários (cujas máscaras impedem saber se entre eles não há provocadores) e logo ataca as colunas onde estão os manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) ou os camponeses do Movimento dos Sem Terra (MST).
 
Na mesma quarta-feira (31/8) em que o Brasil embarcou em seu novo período pós-democrático, a estudante Débora Fabri, de 19 anos, perdeu um olho, que foi atingido por uma bala de borracha disparada pela Polícia Militar de São Paulo, que antes havia agredido dois repórteres fotográficos, e depois destruiu suas câmeras, além de prender dezenas de manifestantes. Algumas das pessoas detidas correm o risco de serem enquadradas na nova Lei Antiterrorista, na qual, se um manifestante quebra uma vidraça ou bloqueia o trânsito, pode ser acusado de violar a segurança nacional.

A truculência mostrada pelo Batalhão de Choque da polícia paulista foi repetida pelos agentes da força pública em Porto Alegre e Brasília – na capital federal, uma jovem foi surpreendida pela ação: “não vieram para dispersar, e sim para nos agredir diretamente, com tudo, e as pessoas que se retiravam eram perseguidas e golpeadas”.
 
Um dado: essa garota que participou da pouco numerosa concentração de Brasília pediu à reportagem do jornal Página/12 que mantivesse sua identidade em anonimato, porque “agora as coisas pioraram muito, existe controle em todas as partes, dizem que na universidade há informantes”.
 
O temor da jovem, que escapou dos gases e das balas de borracha junto com um companheiro – ambos estudantes universitários – é justificado.
 
Em junho, Michel Temer promulgou a Nova Política Nacional de Inteligência, que autoriza e recomenda a infiltração de agentes em universidades, ministérios e outras repartições públicas, assim como nos movimentos sociais. O decreto 8793, o mais parecido à reedição da Doutrina de Segurança Nacional, permite que os organismos de inteligência cooptem e paguem funcionários públicos e estudantes que eventualmente aceitem delatar colegas.
 
Na sexta-feira (2/9), durante seu encontro com um grupo de correspondentes, Rousseff fez um balanço das primeiras 48 horas do governo de exceção.
 
“As pessoas são reprimidas nas ruas, uma moça ficou cega, e se isso continua assim, em algum momento alguém pode morrer, e se isso ocorrer, dirão que foi culpa dos manifestantes. Não podemos aceitar isto, o terrorismo de Estado é algo gravíssimo. Assim começam as ditaduras, que não sempre são militares, às vezes estão disfarçadas (debaixo de governos) civis”.
 
Rousseff foi deposta pelos votos de 61 senadores, tendo 20 a seu favor na primeira votação do impeachment. Minutos depois, se realizou uma segunda votação, na que ela obteve o quórum que determinou a manutenção dos seus direitos políticos, razão pela qual ela poderá ser candidata em eleições futuras, e exercer cargos públicos.
 
Essa sobrevivência política é insignificante diante da magnitude da derrubada do seu governo e do fim do mais longevo projeto político progressista já vivido pelo Brasil. Porém, ao menos demonstra a eficácia da jornada de segunda feira (29/8), quando Dilma enfrentou 14 horas de interrogatório, realizando ela mesma a sua defesa.
 
Apesar de sua oratória linear, por momentos tediosa, a agora ex-presidenta apresentou as cifras e os argumentos jurídicos que expunham a fragilidade da acusação contra ela, desconstruindo a tese dos legisladores do bloco destituinte.
 
Além dessa vitória no plenário, Dilma também demonstrou à opinião pública sua inteireza para defender a legitimidade de suas posições, o que lhe permitiu sair fortalecida desta crise. Talvez tenha começado a construir uma liderança que pode contribuir nesta fase difícil do PT, que pode sofrer uma derrota séria nas disputas municipais de outubro.
 
Impotentes ao tentar demonstrar que a acusada violou as leis orçamentárias, seus inimigos preferiram se valer de ataques com cheiro de naftalina, recordando o discurso da Guerra Fria: o senador-pastor Magno Malta gritou exaltado, dizer que a queda de Dilma permitirá ao Brasil se livrar dos diabólicos governos petistas, que financiaram o Foro de São Paulo, no qual participam dezenas de partidos de esquerda latino-americanos. Já o senador ruralista Ronaldo Caiado, com um script poderia ter sido escrito em Miami, festejou que, segundo ele, “agora não haverá mais dinheiro para financiar o Porto de Mariel (em Cuba)”.
 
O advogado que coordenou a denúncia contra Dilma, Miguel Reale Júnior, planteou como tese final que o país agora marcha a uma “nova época” de liberdade e moral, enterrando os 13 anos de mandatos petistas, nos quais “imperou a ética do malandro e do vagabundo”. Fragmentos do discurso vitorioso no impeachment que pôs fim ao período de governos respaldados pelo voto da cidadania.
 
“Este foi o segundo golpe de Estado que vivi”, declarou Dilma Rousseff. O primeiro foi em 1964, o golpe que derrubou o presidente trabalhista João Goulart. A líder petista, já começou a fazer as malas. Deixará o Palácio da Alvorada e de mudará à casa em Porto Alegre, que pode se tornar sua futura base de ação política, talvez combinada com um apartamento no Rio de Janeiro, onde reside sua mãe.
 
Ela confirmou que voltará a militar, depois de um tempo de descanso, e uma possível viagem por alguns países da América do Sul. Negou manter desavenças com Luiz Inácio Lula da Silva: “sugiro a vocês que desistam dessa armadilha, tentar me indispor com o presidente Lula porque vão perder o seu tempo (…) tenho uma imensa consideração por ele, não só política, também pessoal”. Ela também apoiou a decisão da direção nacional do PT, anunciada na mesma sexta-feira, de iniciar uma campanha de luta em favor das “Diretas Já”, similar à bandeira que unificou um amplo campo político contra a ditadura, em meados dos Anos 80.
 
Finalmente, a campanha foi derrotada pelos generais, que impediram o voto direto e impuseram o indireto para a escolha do primeiro presidente civil pós-ditadura, que seria eleito pelo Congresso Nacional. O vencedor da eleição indireta foi o mineiro Tancredo Neves. Trinta e um anos depois daqueles acontecimentos, o mesmo Congresso ressuscitou uma espécie de voto de privilégio, com 61 senadores impondo o fim de um governo eleito por 54,5 milhões de cidadãos, e com o neto de Tancredo, o hoje senador Aécio Neves – o mesmo que foi derrotado por Dilma em 2014, sendo um dos líderes da trama. Assim chegou ao poder Michel Temer, político que disputou sua última eleição em 2006, como candidato a deputado por São Paulo. Naquele então, obteve pouco mais de 99 mil votos.
 
No dia 31 de agosto, Dilma Rousseff sentenciou: “o maior contrato político do país, o que existe entre o governo e o povo, foi quebrado”.
 
Papa Francisco
 
O papa Francisco convocou os cristãos a orarem por “este momento triste” que o Brasil atravessa, mensagem que fez alusão ao quadro político pós-destituição da presidenta Dilma Rousseff e conseguinte posse de Michel Temer, em meio a um cenário de crise política e econômica no país. O sumo pontífice convidou os fiéis a rezar pela Virgem de Aparecida, para que proteja todo o Brasil e o povo brasileiro. A convocatória de Francisco se tornou pública durante a inauguração de uma pequena estátua de bronze da Aparecida, padroeira do Brasil, nos jardins do Vaticano. O Papa disse que a força da oração ajudará a que a Virgem proteja os mais pobres, os excluídos, os anciãos abandonados, as crianças de rua e as vítimas de todo tipo de exploração. Ademais, o líder da Igreja Católica disse não estar em condições de confirmar se poderá viajar ao Brasil no ano que vem, como havia prometido em sua visita anterior, em 2013. “Não sei se será possível, mas ao menos a terei (a Virgem) aqui mais perto”, declarou.
 
Não é a primeira vez que o Papa expressa sua solidariedade com Rousseff, assim como a sua preocupação pelos problemas institucionais do gigante latino-americano.
 
Há um mês, a ex-mandatária revelou, em entrevista ao jornal argentino Página/12, que recebeu uma carta pessoal do Papa.
 
Tradução: Victor Farinelli
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