sábado, 17 de dezembro de 2016

Pensando alto: Qual é a estratégia dos golpistas? - Temer o Congresso e o STF sabem exatamente onde querem chegar? Ou encarnam forças sobre as quais têm mínimo controle?

Beto Barata/PR


Gilberto Maringoni

HÁ ALGO MUITO INTRIGANTE na conjuntura: a escalada depressiva/ autoritária obedece a alguma estratégia com começo, meio e fim, ou as coisas estão sendo tocadas no vai-da valsa, no espírito "chuta para ver no que dá"?

Digo isso porque o governo - auxiliado pelo Legislativo e por um truculento Judiciário - está forçando de tal maneira o curso dos acontecimentos, sufocando manifestações democráticas e vedando canais democráticos de expressão popular, que podemos chegar a uma situação de virtual descontrole/ desespero social.

A economia segue em queda livre, fruto das opções econômicas de Dilma Rousseff, aprofundadas por Michel Temer. Todas as iniciativas até aqui são pró-cíclicas. A propalada recuperação viria pelo fato de o país comprimir drasticamente o orçamento para liberar recursos para o rentismo. Ou seja, estaríamos purgando uma espécie de sacríficio unilateral para ganharmos uma hipotética confiança do mercado, visando novo ciclo de investimentos.

VALE LEMBRAR QUE O ALVO principal dos golpistas, a Constituição de 1988 – em processo de desmonte nas últimas semanas - não foi resultado de acordos por cima. Seu substrato social expressa pelo menos uma década e meia de impulsos democráticos da sociedade brasileira, ocorridos entre as décadas de 1970-80. O que se está a dilapidar não é um texto frio, mas uma historicidade social viva.

O mesmo se dá com a depredação da CLT e com a vinculação de gastos, lançados na Constituição de 1934. Busca-se apagar forças concretas da sociedade brasileira.

A única maneira de se esmagar tais energias é com uso de brutal repressão e recursos a ilegalidades sem tamanho. Essa dinâmica está em andamento e suas expressões maiores são o atropelo entre os poderes e a bestialidade policial.

Pode-se obter algum êxito por algum tempo com tais medidas. Mas é duvidoso que - por exemplo - a PEC 55 seja aceita passivamente quando seus efeitos deixarem de ser abstratos e passíveis de manipulação pelos monopólios midiáticos. Podemos chegar a uma situação em que a falta de escolas, de postos de saúde, de emprego e de renda se transformarem em maré montante de saques de massa, depredações nas cidades e choques de extrema violência entre a população desesperada e um aparato de segurança armado até os dentes.

BUSCO AQUI ANALOGIAS HISTÓRICAS para tatear as tendências no médio prazo. Olho para a gênese da ditadura de 1964.

O país vivia uma desaceleração econômica e uma escalada inflacionária, ao longo do ano de 1963. A crise era fruto das contradições do modelo nacional-desenvolvimentista que - pela alta de importações - começava a gerar preocupantes déficits na balança comercial, e em problemas no balanço de pagamentos.

EM 1964, DADO O GOLPE - numa conjuntura de crescimento da economia internacional - a dupla no comando da economia (Roberto Campos e Octávio Bulhões) decide realizar uma recessão planejada em 1965-66. O intuito era reorganizar preços internos, reduzir importações e resolver os problemas no balanço de pagamentos.

A tática teve pleno êxito. Em 1968, com poupança externa e investimento estatal, a economia iniciava uma década de crescimento econômico. Na esteira desse ciclo, o principal projeto da ditadura - o II Plano Nacional de Desenvolvimento - completou a cadeia produtiva interna, com o advento da indústria de bens de capital. Escapávamos da "industrialização restringida", termo cunhado por João Manuel Cardoso de Mello, para classificar as distorções do desenvolvimentismo dos anos 1950. Ali, o estabelecimento de apenas dois departamentos da indústria - bens de consumo leves e duráveis - nos levou a um beco sem saída aparente.

QUAL A ANALOGIA POSSÍVEL?

A analogia está no fato de a ditadura ter feito seu ajuste quando contava com razoável grau de respaldo popular. Mesmo assim, a classe média que apoiou o golpe começou a se descolar do regime, e sua maior decorrência foram as manifestações estudantis que ganharam setores expressivos de massa, entre 1967-68.

O endurecimento do regime só foi empreendido a partir de dezembro de 1968 - com o AI 5 -, quando o país iniciava um ciclo econômico expansivo.

Foi a fase em que a classe média pode adquirir seu "segundo carro", como se falava á época, e a demanda por bens de consumo duráveis - móveis e eletrodomésticos - se materializou no chamado "milagre econômico". Taxas de crescimento do PIB acima de 10%, entre 1971-74 consolidaram a fase mais popular da ditadura, juntamente com seu viés mais duro.

Ou seja, a repressão mais profunda não ocorreu na fase recessiva - embora ela existisse - mas na etapa seguinte. Isso eliminou a esquerda, a essa altura residual, e isolou focos de descontentamento.

HAVIA MÉTRICA NESSA ESCALADA.

Agora não há nada disso. As várias frações da direita competem e se sobrepõem entre si, numa explícita disputa de nacos de poder. A Globo ora morde, ora assopra. O Congresso e o STF se atropelam mutuamente.

Voltemos à História. Entre 1848 e 1851, na França, após a derrota das forças populares na Revolução, um intrincado jogo de poderes entre facções da burguesia industrial, bancária e agrária, disputas entre poderes, violações da Constituição e um emaranhado de conciliações e rompimentos parciais gerou uma teia de interesses contraditórios cujo desenlace levou três anos para acontecer.

UMA CRISE ECONÔMICA CASTIGAVA O PAÍS. Karl Marx assim descreve o cenário em o "Dezoito brumário de Luís Bonaparte", texto fundamental para se reler nos dias que correm: “A burguesia (...) clamava ainda mais alto por um "governo forte"; achava tanto mais imperdoável deixar a França sem administração quanto mais parecia agora iminente uma crise comercial geral, que conquistava recrutas para o socialismo nas cidades da mesma forma que o preço ruinoso do trigo o fazia no campo. O comércio diminuía dia a dia, o número de desempregados aumentava visivelmente, havia pelo menos dez mil operários famintos em Paris, inúmeras fábricas estavam paralisadas em Rouen, Mulhouse, Lyon, Roubaix, Tourcoing, St.Etienne, Elbeuf etc".

O país viveu os efeitos de uma séria crise internacional entre 1845 e 1850. De 1851 a 1857, a economia volta a crescer, para em seguida, conhecer novo mergulho descendente, na maré de turbulências da economia internacional.

Napoleão III, sobrinho de Bonaparte, logra unificar várias facções burguesas justamente no breve hiato entre duas crises e dar um golpe de Estado, em 2 de dezembro de 1851. Ou seja, foi necessário uma recuperação econômica para resolver a disputa encarniçada no seio das classes dominantes.

NA DITADURA BRASILEIRA DE 1964-85, a reunificação das facções da burguesia com a pequena burguesia se dá quando a recessão é deixada para trás, em 1968.

Onde está a a analogia possível com os dias que correm?

Está no fato de ser extremamente difícil que - com economia mundial em contração, salários e empregos em queda e cortes fundos na demanda estatal - se consiga coesão política em torno de Michel Temer para debelar as múltiplas crises que assolam o país e estabilizar sua gestão.

É possível que enfrentemos um interregno de duração ainda incerta, com a permanência de turbulências profundas e o aumento de uma crise social que pode degenerar em convulsão. Nesse cenário, também é possível que Michel Temer – após realizar o serviço sujo de aprovar a PEC 55 – não encarne o Bonaparte dos sonhos das classes dominantes e seja ejetado de sua cadeira, juntamente com vários apelidos prosaicos das listas de delação premiada.

E que os tempos de crise e disputa se prolonguem.

Os golpistas não têm estratégia, a não ser realizar rapidamente o desmonte do Estado, estabelecer um novo ciclo concentrador de renda e esperar para ver no que dá.

É difícil vislumbrar estabilidade nesse cenário.

Quem quiser ler o “Dezoito Brumário”, de Marx, pode fazê-lo através deste link:


(A dica para voltar ao livro me foi dada por dois amigos queridos, separadamente e no mesmo dia, Haroldo Saboia Saboia e Pedro Paulo Zahluth Bastos)

(Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC) 

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