terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Um herói português como inspiração democrática - A forma com que estamos enfrentando esta era aponta para um aumento da pobreza, da descoesão social e da tolerância com o fascismo emergente.

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Tarso Genro


O então major Melo Antunes, herói da Revolução dos Cravos em Portugal, um dos fundadores e líderes do MFA (Movimento das Forças Armadas) relembra, na sua  extensa autobiografia em forma de entrevista (“O Sonhador Pragmático”, Notícias Editorial, 2004), uma conversa com seus camaradas de armas e com oposicionistas ao salazarismo, uma resposta que deu aos seus interlocutores, sobre o “despreparo” da população para o exercício da democracia, com a seguinte observação:”…é evidente que se esse tipo de teses  (“o povo não sabe escolher”) passasse, jamais haveria qualquer hipótese de mudança, porque nunca seria oportuno, nunca país algum estaria preparado para fazer uma escolha”. O projeto democrático moderno, inspirado na Revolução Francesa, já passou por momentos dramáticos, resolveu-se por conquistas humanísticas extraordinárias e também, em momentos de crise aguda do capitalismo (o qual ele viabilizou), ensejou barbáries extremas. Das guerras neocoloniais a Hitler, das barbáries cometidas no Vietnã ao estrangulamento das democracias, na América Latina, pelos golpes de Estado promovidos pelos Estados Unidos para proteger seus interesses econômicos. Olhar a vida de Melo Antunes, neste belo e inteligente livro, ajuda-nos a pensar no Brasil de hoje.

A crise no Brasil, na sua Federação e nos Estados, as contra-reformas que estão sendo encaminhadas na América Latina, os recados de Trump à União Européia e à China, o discurso de posse do referido Presidente – nacionalista -xenófobo e autoritário – o avanço da China com as suas ilhas artificiais e a ocupação da África (cada vez mais empobrecida), formam no cenário mundial um quadro análogo ao que precedeu a Segunda Guerra Mundial. Sustento que isso deve preocupar todas as forças políticas que apostam no caminho democrático, independentemente de partidos, e que estão dispostas a se unir para a construção de uma nação fundada na Justiça Social e Soberania na interdependência, que controle o seu território e as suas riquezas naturais. O Brasil, rico em população, rico em bens naturais, rico em unidade cultural e linguística – na era Trump e na crise mundial – também rico em desigualdades e insegurança, tem que se preparar para o pior.

A forma com que estamos enfrentando esta era, aponta – pelos atos e definições do Governo atual – para um aumento da pobreza, da descoesão social e da tolerância com o fascismo emergente. Aponta para a “naturalização” da manipulação com os processos judiciais “direcionados” e, ao mesmo tempo, para um aumento da tolerância com a corrupção, que se alojou ainda de forma mais plena no Estado brasileiro. A trágica morte do Ministro Teori, um juiz reconhecido hoje, até pelos seus detratores, como um exemplo de seriedade e isenção, e o aparecimento das sangrentas rebeliões nas prisões, como uma questão à beira de ser tratada como um tema de “segurança nacional”, adicionam ingredientes dramáticos a uma situação de crise, que já era gravíssima.

É um momento repetido e  conhecido na História. Nele as forças políticas em confronto, dada a sua fragmentação, impotência, ou falta de idéias, não conseguem articular um bloco social e político, para liderar uma saída. A experiência originária destas crises já apresentou quatro caminhos – que às vezes se combinam e se transformam um no outro – para superar situações limite e indicar a transição para uma outra etapa do processo político: um Golpe de Estado, fechando as torneiras da democracia; uma Revolução que instaure um Governo forte; uma “conciliação” política, que aparente mudar algo para não mudar nada; uma “Concertação” estratégica, baseada em um mínimo programático, para costurar – no médio prazo – uma nova maioria capaz de liderar o país. Seu sentido, ordinariamente, é reconstituir o tecido econômico e social da democracia. Este último caminho, o da Concertação, partiria do pressuposto – para o nosso caso concreto – que no centro da questão nacional brasileira, hoje, está a “questão democrática”. E que, sem solucioná-la, não sairemos da crise econômica pela via afirmativa de um projeto de nação.

Os dois primeiros caminhos – mais além da sua inviabilidade histórica – seriam caminhos violentos. Através deles aquela violência – hoje já presente no cotidiano da sociedade brasileira – transformar-se-ia em violência total de Estado, substituindo a coesão pelo consenso, pela unificação provinda da força. Seria uma violência estatal “privatizada” de forma aberta, em defesa dos novos grupos dominantes e usada sem limites, para manter o poder, como ocorre em todas as ditaduras. Estas precisam reproduzir, eternamente, seu próprio arbítrio, bem como o controle social que dele deriva, para justificar-se como grupo dominante com “governabilidade”. O caminho da “conciliação” é o caminho tradicional das elites políticas do nosso país que, ao fazer concessões aparentes e simular um acordo em torno de princípios, apenas adia a crise e a manipula sem mudanças. A “conciliação” sempre é feita entre os grupos dominantes, que já estão no poder político, direta ou indiretamente, e é predominantemente conservadora.

Posso estar enganado, mas tudo indica que a única possibilidade de uma saída para o Brasil, no atual contexto, é uma saída “concertada”: uma Concertação Estratégica, que seria – aceita esta hipótese – uma forma não paralisante e não conservadora de tocar adiante o país, de forma minimamente coesa, como ocorreu na transição da Espanha pós-franquista, em Portugal com a Revolução dos Cravos, no Brasil no início do primeiro Governo Lula e no Chile pós-Pinochet. Em todas estas experiências, as forças políticas em conflito, com presença no cenário de disputa e resguardadas as suas peculiaridades, abdicaram dos seus programas máximos para resguardar determinados valores – presentes no sistema democrático – que lhes permitiria, na sequência, dar continuidade às lutas que lhe são mais caras num ambiente de democracia política.

“Concertação”, como gênero, pode abrigar várias espécies de temas, tanto econômicos como políticos, bem como diversas instâncias e níveis de conflito. Ela parte, porém, de uma base comum: as facções envolvidas no processo reconhecem que, a perdurar a situação do presente, ela levará a um momento tal, que os valores sobre os quais formalmente se sustentam as suas propostas de futuro podem ser comprometidos pela pior possibilidade. No caso da Alemanha, durante Weimar – por exemplo -, o nazismo conseguiu crescer e se impor porque a social-democracia, os comunistas, os democratas de todas as vertentes religiosas, os militares que não apoiavam o extremismo nazi, ( depois submetidos às tropas de choque de Hitler) não criaram uma alternativa. A “elite” democrática alemã – aqui referida como o grupo dirigente com capacidade de liderar e elaborar uma saída democrática e nacional -não teve capacidade de responder à crise econômica, à crise política e à humilhação de Versalhes.

É possível dar um exemplo concreto e atual, da diferença entre “conciliação” e “concertação”, remetendo à questão da eleição da Mesa do Senado que, embora seja um tema menor, perante a sequência de desastres com que nos defrontamos, adquire importância porque pode ser um momento simbólico para encontrar um caminho. Uma força de esquerda ou centro-esquerda, que renunciar à formação de uma chapa alternativa à chapa oficial do Governo Temer, e participar do acordo para integrar a Mesa, iniciará um processo de “conciliação”. Participará, assim, de um acordo que, por dissolver ainda mais a sua  identidade política e moral perante a sociedade, enfraquecerá  sua representação e a sua capacidade de atrair aliados.

Não atrairá, por esta via, na sequência, partidos, frações de partidos, movimentos, personalidades – a sua esquerda ou ao centro – para compor um novo bloco social e político dirigente, para dar um novo rumo ao país. Um “parte” que é carente de identidade ideológica, num processo indeterminado da dimensão que vivemos, pode novamente ficar refém dos seus antigos aliados e ir se adequando, silenciosamente, aos ditames da suas contra-reformas. Participar de uma Mesa é um direito das minorias na democracia parlamentar, que se torna – por escolha subjetiva de quem o detém – uma prerrogativa a ser, ou não exercida, dependendo dos termos em que ela é oportunizada.  Alinho abaixo algumas questões que poderiam, entre outras, compor uma agenda de unidade imediata, para a formação de uma nova maioria política no país, que já se refletisse nas próximas eleições, seja agora em 17, seja em 18, numa nova Frente política com maioria parlamentar, para governar o país com estabilidade, num momento extraordinariamente difícil da globalização.

Com o agravamento da crise, esta agenda poderia até atrair forças que, hoje “arrependidas”, foram levadas ao golpismo pela intensa pressão da mídia tradicional, que estava interessada – como hoje está claro para todas as pessoas de bom senso -, não no combate à corrupção, mas nas “reformas” liberal-rentistas que estão em curso. Forças que viriam para esta nova composição sem capacidade hegemônica. A ideia central seria a retomada do crescimento e do emprego, combinada com algumas mudanças de razoável alcance político, para que o país reajuste o seu curso democrático. Uma Concertação não é um processo destinado a gerar unanimidade, mas um novo consenso majoritário, capaz de tirar uma sociedade determinada de um impasse de gravidade, produzindo formas políticas e organizativas específicas para isso.

A agenda poderia ser testada com a seguinte proposta, para ser aperfeiçoada no curso do próprio Concerto:  reforma política com votação em listas fechadas e verticalidade das alianças, com proibição de financiamento empresarial dos partidos e das campanhas; novas medidas estruturais, definidas e coordenadas pela União, para Reforma do Sistema Penitenciário e Combate ao Crime Organizado, com base nas orientações da Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública; retomada plena do Pré-sal, para o Controle da União e continuidade dos investimentos previstos no Plano de Defesa Nacional, principalmente os referentes ao domínio sobre a Amazônia e o Atlântico Sul; suspensão, até a eleição, de um novo Presidente, da tramitação da Reforma da Previdência e da Reforma Trabalhista, para que as forças políticas possam apresentar e discutir, na sociedade, com “paridade de armas”, novas propostas sobre estas matérias; retirada da Educação, Saúde e Segurança, do “ajuste”, já a partir do Orçamento de 2018; reescalonamento das alíquotas do Imposto de Renda, reduzindo a carga dos assalariados dos baixos e médios rendimentos, aumentando-as sobre os altos rendimentos; como orientação de Política Econômica de caráter desenvolvimentista, tolerância de um déficit fiscal de até 3% do PIB, por quatro anos, à exemplo do permitido na União Européia.

A lembrança de Melo Antunes, no início deste artigo, não é despropositada. A deterioração das funções públicas do Estado, que explodiu nas rebeliões das penitenciárias, na crescente força política do crime organizado, na queda vertiginosa da oferta de emprego e no desprestígio do sistema político. tem uma origem precisa, no plano da subjetividade coletiva: a criminalização da política em geral, feita com esmero pela grande mídia, proporciona a politização da criminalidade e esta desperta o monstro do fascismo e do irracionalismo, que promete “prontas respostas” para tudo. Fora da política e dos partidos e, portanto, fora da democracia. A lição de Melo Antunes deve ser celebrada e relembrada para ficar.

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Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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