quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Outro modo de interpretar o Brasil -O Estado está em rápido e irreversível processo de degeneração e o governo está sem qualquer condição administrativa, política e moral para revertê-lo.

Antonio Cruz / Agência Brasil



Reginaldo Souza Santos (1) e Fábio Guedes Gomes (2)


No Ensaio anterior, a preocupação central foi mostrar que há muito a política econômica não produz resultados positivos duradouros porque mal concebida e limitada às ações de curto prazo, mas, mesmo assim, voltadas exclusivamente para os aspectos da estabilização, através da redução da demanda agregada: como o corte autônomo nos gastos públicos e a elevação da taxa de juros para inibir o consumo das famílias e o investimento das empresas, objetivando combater uma inflação invariavelmente explicada pelo mainstream econômico através de hipóteses que há muito tempo são questionadas.

As medidas mais estruturantes, portanto de longo prazo, ficam dependendo dos resultados das ações estabilizadoras. E mesmo quando foi possível um período mais longo de estabilidade nos preços (a custos sociais muito elevados), ainda assim as autoridades públicas (em atendimento aos interesses dos agentes privados) sempre encontravam “motivos” para postergar a retomada da expansão mais vigorosa das atividades: dizer que o ajuste fiscal não era “sustentável” foi e é o mantra consagrado

Porém, nos poucos momentos em que a covardia perdeu espaço para a ousadia – em intervalos dos governos Lula e Dilma – a sabedoria não foi a mesma, posto que a forma de fazer não fosse a mais conveniente ao país; fez-se a opção por projetos setoriais (como no caso da cadeia de petróleo e gás, menos mal) ou específicos (como as más arranjadas cópias dos ditos “campeões nacionais”, vinculados ao agronegócio). Ainda que fossem projetos bem concebidos e executados, persistia um problema: a desintegração entre eles – gerando deseconomia social.  Ajudando a piorar ainda esse quadro, setores relevantes para a retomada da expansão das atividades e, sobretudo, para melhorar a distribuição e elevar o bem estar dos segmentos pobres da população foram deixados de lado – estamos falando da educação, da saúde, da segurança, da infraestrutura e do meio ambiente. 

Tudo isso estaria resolvido (ou só será resolvido) caso todas as ações estivessem (ou estejam) integradas num só movimento, ou melhor, num só Projeto Nacional e assim desfazer de uma vez a concepção errada, mas conveniente aos interesses daqueles que as formulam, de que as medidas de longo prazo só devem ser encaminhadas e implantadas depois que as condições de curto prazo estejam adequadas (a quem?). 

No entanto, conceber esse Projeto Nacional na forma que estamos propondo não nos parece ser a tarefa mais difícil de todo esse processo, mas a sua execução. Normalmente se atribui ao financiamento e às instituições responsáveis a grande relevância do processo de execução de um projeto dessa natureza; esses aspectos, sem dúvida, devem e recebem sempre todas as atenções necessárias, porém a nossa preocupação maior deve estar voltada para quem deve caber a responsabilidade de executar tão grandiosa e impactante tarefa. Invariavelmente, essa tem sido uma questão sem atribuição de qualquer relevância em nossos projetos sociais; e mesmo quando algum destaque é dado, tem um status marginal na escala de prioridades ou de preocupações. Não deve ser assim, sob pena de amargar fracasso rotundo, como tem acontecido com as intervenções do Estado nas últimas décadas!
 
A evidência mais recente e ainda muito viva em cada um de nós e também no imaginário social é o projeto dos Jogos Olímpicos. De um modo geral, tendemos a ter uma avaliação muito positiva desse evento – principalmente quando esse olhar se enviesa para as quadras, campos, pistas, piscinas, rios e mares, de onde ressaltam a estética poética dos atletas, magnificada no esplendor das imagens proporcionadas pela sofisticação tecnológica das transmissões. Porém, analisando-o mais atentamente sob outros aspectos podemos concluir que as perdas foram maiores que os ganhos ou que os resultados alcançados ficaram bem aquém do enorme gasto que foi feito para realizar o Projeto Olímpico.
 
Tomando a cidade do Rio de Janeiro como o principal espaço de realização do projeto olímpico, é conveniente considerar que ali, no intervalo de 10 anos, foram realizados cinco megaeventos: os jogos pan-americanos, em 2007, os jogos militares mundiais, em 2012, a jornada mundial da juventude, em 2013, a copa do mundo de futebol, em 2014, e as olimpíadas, em 2016.  E o que caracterizou o conjunto dos eventos? Primeiro, a incompletude dos projetos, e a face mais visível desse aspecto foram as inconclusas linhas do metrô, linhas do BRT, a não despoluição da Baía de Guanabara e a destruição sem reconstrução do autódromo Nelson Piquet. Segundo, a desintegração entre eles e também com o futuro sócio-econômico-urbanístico da cidade – simplesmente os projetos foram sendo executados porque importantes, mas sem uma perspectiva clara de longo prazo para cidade. Terceiro, o elevado custo dos projetos: a) por conta da corrupção bilionária, constatada nas diferentes linhas de investigação; b) por conta dos projetos mal feitos – os problemas nos estádios e a queda do trecho da Ciclovia Tim Maia, que liga São Conrado à Barra da Tijuca, são os exemplos emblemáticos desse fato.
 
Ainda mais a se considerar que a maior parte dos equipamentos (principalmente as chamadas arenas) já se encontra em estado avançada degradação – ainda se discute quem fica responsável pelo quê. A imprensa vem denunciando sistematicamente esse descalabro, particularmente a imprensa do Rio de Janeiro.
 
Com isso, o que nós queremos chamar a atenção é que a responsabilidade pela execução (direta ou em parceria) dos projetos referidos estava confiada ao corpo técnico vinculado por contrato ao Estado brasileiro, nas representações federal, estadual e municipal. Portanto, os erros que levaram ao fracasso total ou parcial foram cometidos na execução. Sendo o projeto olímpico marcado por tanto desacertos, o que esperar do Projeto Nacional? 
 
Daí ser pertinente indagar: os 10 milhões de trabalhadores contratados pelo Estado e ativos (nas esferas federal, estadual e municipal) estão preparados técnica, psíquica, ideológica e moralmente para conceber e executar o Projeto Nacional? Esta é questão central da qual nos ocuparemos neste sexto e último ensaio da série Outro Modo de Interpretar o Brasil.
 
Nos textos anteriores, principalmente no V, dissemos que a sociedade brasileira tem uma vantagem sobre as dos demais países de desenvolvimento intermediário e mesmo à frente também de alguns desenvolvidos e que essa vantagem estava em ter montado as estruturas estatais vitais de produção de bens e serviços de consumo coletivo: como a educação, saúde, segurança e infraestrutura; e que o nosso problema reside naquilo que aparentemente constitui o lado menos preocupante de todo o processo: fazer funcionar e bem tudo isso. Aqui reside uma unanimidade quase absoluta, pois até os não usuários de alguns desses bens e serviços apontados acima são de opinião de que a oferta do Estado não tem qualidade. Por quê?
 
Considerando que as estruturas físicas já estão construídas, em boa parte os recursos para essa produção são vinculados constitucionalmente, a remuneração média do trabalho contratado pelo Estado é superior à média daquele contratado pelo setor privado (embora existam diferenças específicas) e que a qualidade técnica, em muitos casos, é superior à exigida pela tarefa que executa, por que, então, o trabalhador do setor público oferta bens e serviços de tão péssima qualidade? Como dissemos antes, para o paciente parece “ser preferível o calvário ‘voluntário’ ao sofrimento impiedoso imposto pelos profissionais da saúde em momentos da consulta médica ou do internamento hospitalar” ou quando já fica transparente para “parcela considerável daqueles que são ‘obrigados’ a frequentar a escola pública que a avalia como algo irrelevante para a vida” ou, ainda, quando esses mesmos cidadãos que não podem ter alternativa ao serviço público estão convencidos de que os sistemas de segurança (polícia) e justiça protegem mais os ricos do que os pobres. Por isso, o jovem do Brasil contemporâneo ao perder as “referências pedagógicas formais para ler e interpretar os textos, ganha uma capacidade extraordinária para ler e interpretar o seu contexto – sobretudo, o seu miserável mundo! Assim, compreende a lógica [bruta] das relações sociais, a razão das coisas e o último trabalho que lhe deixaram para executar”. 
 
Estamos dando destaque especial a esta questão por ser um assunto muito sério e relevante para os interesses futuros da sociedade brasileira, particularmente para o êxito ou não da agenda de trabalho que estamos propondo, nesta série de ensaios. E, de certo modo, explica em grande medida os problemas que enfrentamos e que vêm se acumulando ao longo do tempo, principalmente no que respeita àqueles de ordem administrativa que impactam no econômico, no social, no psicológico e, óbvio, no bem estar geral de todos. Decerto que algumas causas são específicas, originando-se e produzindo efeitos no plano micro organizacional, como: a falta de condições técnicas e materiais de trabalho; as precárias relações de trabalho (principalmente no que respeita às condições de contrato e remuneração); a baixa qualificação da mão de obra; o baixo aproveitamento dos trabalhadores de carreira nas posições de chefias e, por isso, alta rotatividade nos cargos de comando por falta de legitimidade funcional e da fluidez dos interesses partidários”; etc. 
 
Além dessas condições pouco favoráveis, ficam agravadas e propícias ao conflito pela relação do funcionário ofertador do bem ou prestador do serviço com o público usuário. Por razões pouco conhecidas, o fato é que o funcionário público na relação direta com o usuário do serviço ofertado pelo Estado tem comportamento inadequado, demonstrando indiferença e, por vezes, até irritação quando instado a fornecer uma informação qualquer. A resultante é o conflito aberto. Abundam notícias relatando esses graves conflitos, que começam com agressões verbais, físicas e danificação do patrimônio público: instalações, ruas, praças, estradas e tudo que possa ser identificado como público; muitas vezes, não escapam nem mesmo o patrimônio privado.
 
Tomando como hipótese que o problema está localizado em cada uma das unidades prestadoras de serviços, os administradores públicos nesses níveis hierárquicos buscam a seu modo “melhorar” a prestação dos serviços e mitigar ou mesmo superar os conflitos. A solução tem sido mediante consultorias externas fazendo intervenções cada vez mais constantes; porém, os resultados alcançados não têm sido proporcionais ao gasto de tempo e de recursos.
 
Além dessas causas que denominamos de micro organizacionais, existem outras forjadas no plano das macroestruturas que estão impactando negativamente no processo de trabalho no plano micro e que se sobrepõem a qualquer esforço de conserto nesse nível de execução. Certamente que procurar respostas no plano das macroestruturas para os problemas verificados na execução e resultados das políticas públicas (portanto, no plano das microestruturas) não é usual, principalmente para as pesquisas no terreno da Administração – mais voltadas para os estudos de caso, portanto para uma empiria microscópica. 
 
Porém, os estudos nessa área devem fazer um esforço intelectual de integrar as esferas macro e micro da análise. Para tanto é preciso que estejam mais comprometidos em observar e explicar melhor os problemas da nossa realidade e encaminhar as soluções mais convenientes aos interesses da sociedade em geral e menos em fazer exercícios acadêmicos para a validação de teorias e métodos previamente elaborados – muitas vezes construídos e importados a partir de realidades bem distintas. 
 
É certo que o rigor acadêmico reclamará dessa atitude, alegando que não é a melhor forma de fazer ciência; e respondemos: então, que vá às favas o rigor metodológico da produção acadêmica. A nossa preocupação é com os problemas que o Brasil enfrenta (e que são muitos e seculares) e que ao invés de abrandarem à medida que o nosso “conhecimento científico” avança, eles têm se agravado e sem solução à vista.
 
Decerto que o esforço de integrar no mesmo movimento de análise os planos micro e macro deve ser mediado pelas relações intergovernamentais, nas condições de um Estado federado em que as esferas de governo têm um relativo grau de autonomia, e por isso [essas relações] são marcadas mais fortemente pelos conflitos do que pela cooperação – e a questão tributária é a principal fonte de conflito. 
 
A análise acadêmica e também aquela do senso comum trabalham com três hipóteses explicativas para os problemas que a sociedade enfrenta com a oferta de bens e serviços públicos: a) a insuficiência de recursos financeiros; b) o número relativamente pequeno de funcionário para atender a uma demanda sempre crescente; e c) em geral, a baixa qualificação e/ou profissional do trabalhador contratado pelo Estado. 
 
Todas essas hipóteses são questionáveis por falta de embasamento empírico mais verossímil. Principalmente no caso dos recursos financeiros, pois o que se observa é um trade-off entre o volume de recursos destinados para a educação e saúde (sempre crescente porque vinculados) e a avaliação do usuário desses serviços (sempre insatisfeito – as pesquisas de opinião sempre revelam um alto grau de insatisfação da população em relação a esses serviços prestados pelo Estado); para sustentar o argumento da insuficiência de dinheiro sempre é usado como indicador o gasto per capita e comparado com outros países, principalmente com os de renda mais elevada – por si só esse indicador não diz muito até porque não leva em consideração o custo de vida, etc.
 
A situação é a mesma com relação ao pequeno quantitativo de pessoal para o atendimento da população usuária dos serviços públicos. Ao invés se tomar a produtividade do trabalho como indicador de comparação, usa-se comumente a relação pessoal contratado pelo Estado versus total de trabalhadores ou população total de cada país. Comumente o índice do Brasil está abaixo da média, quando se tomam os países da OCDE, por exemplo, nos quais é elevado o índice da população usuária de educação, saúde, segurança e lazer. Mesmo esses índices são problemáticos quando usados em comparação. O índice sendo maior nos países mais desenvolvidos pode estar mais associado à proteção da população desempregada (portanto, com um caráter de previdência em países com elevado desemprego tecnológico) e menos a uma busca do “ótimo” na oferta de serviço público e na satisfação da população com o nível e a qualidade da oferta. 
 
Com relação à qualidade da mão de obra é preciso uma pesquisa bem mais específica sobre essa questão para se verificar o grau de compatibilidade entre a capacitação que se tem e a tarefa que se realiza. De outro modo, é preciso que seja dito que em termos da formação o trabalhador brasileiro tem melhorado muito nas últimas décadas – principalmente aquele vinculado ao Estado – seja pela maior cobertura de jovens com nível superior (PROUNI, REUNI, IFES e PRONATEC), seja pelo atrativo salarial em razão do qual os cargos de nível médio invariavelmente estão sendo preenchidos por trabalhadores com nível superior; isso ocorre em toda a administração pública, sobretudo na área de segurança: polícia federal, rodoviária federal, militar, civil e técnica e as guardas municipais.
 
No Brasil, somos 10 milhões de trabalhadores brasileiros contratados pelo Estado e ativos, nos três níveis de governo: federal, estadual e municipal. Desses, mais de 50% (cerca de cinco milhões) estão trabalhando nas áreas de educação, saúde e segurança. Levando em consideração que os estratos médio e alto da população já não usam os serviços públicos de educação, saúde e segurança – exceto em faixas especiais como serviços médicos de emergência e de alta complexidade e da educação em algumas faixas de carreiras e de universidades melhor ranqueadas. Nesse sentido, pode ser percebido que a relação trabalhador/população efetiva a ser atendida se eleva bastante. Nesse caso, devemos considerar que a força de trabalho disponível para prestar serviços públicos é bastante considerável e tem capacidade para aumentar a quantidade e melhorar a qualidade daquilo que produzem – através do aumento da produtividade do trabalho. 
 
Sendo assim, os argumentos acima senão derrubam por completo as hipóteses que justificam a oferta de serviços públicos com baixa qualidade e em quantidade insuficiente, pelo menos relativizam bastante a sua força de persuasão e nos obrigam a procurar outras causas explicativas mais verossímeis. Em verdade, a defesa dessas hipóteses pouco confiáveis – principalmente a da falta de recursos – esconde problemas graves e estruturais da administração pública brasileira: a incapacidade gestorial dos administradores políticos brasileiros, notadamente daqueles que estão nos comandos executivos, e a imoralidade funcional – que começa com a irresponsabilidade, caracterizada pela pouca importância dada aos resultados (finalidade) daquilo que faz ou que está diretamente responsável para fazer, e culmina com a corrupção epidêmica (que agora vem à tona, mostrando o caráter sistêmico do problema), que atinge todas as áreas da Administração Pública e do setor privado que se relaciona negocialmente com o Estado. Isso sem falar nas relações intra e inter agentes privados orientadas por práticas corruptas ou fora dos preceitos normativos
 
Esse problema está se tornando tão grave, sob todos os aspectos, que alguns de forma escancarada e cínica começam a dizer que não se deve dar muita importância à corrupção porque, em primeiro lugar, as relações capitalistas são, desde sempre, imorais por natureza; em segundo lugar, porque do ponto de vista macroeconômico – excetuando alguma inconveniência causada pela concentração de renda – não produz qualquer efeito (nem positivo e nem negativo) porque a renda malversada só faz mudar de mãos. O problema dessa formulação é que não se está falando de uma corrupção que ocorre apenas no âmbito privado; está-se falando de atos corruptos sobre o patrimônio que é uma propriedade da sociedade (e de muita utilidade para os mais necessitados) e que pessoas remuneradas pelo Estado – pela sociedade em última instância – devem zelar por ele e não dele se apropriar privadamente, contrariando todos os princípios legais e, sobretudo, morais. 
 
Ademais, a corrupção também é prejudicial porque na medida em que a proporção roubada extrapola os níveis das necessidades de consumo corrente de quem as pratica e alcança os limites da acumulação de riqueza, nesse ponto o agente público dedica a maior parte das suas preocupações em administrar o dinheiro desviado (principalmente tentando escondê-lo dos órgãos de controle do Estado) e deixa em segundo plano o gerenciamento cotidiano da coisa pública. Desse modo, a generalidade e gravidade dos fatos evidenciados mais recentemente permitem concluir que a administração pública brasileira pouco a pouco está perdendo o seu caráter republicano. 
 
Sendo assim, a desestruturação (ou disfuncionalidade) dos serviços públicos no Brasil ganha um padrão de normalidade; quando excepcionalmente algo funciona bem de acordo com os princípios da finalidade do projeto ou da instituição é tomado como “casos exitosos” – e sempre recebendo destaque da mídia e premiações de organismos nacionais e internacionais. Por outro lado, é preocupante saber que parte da pesquisa voltada para a avaliação da política pública tem um interesse especial por essas excepcionalidades, deixando de lado estudos mais aprofundados e críticos sobre a nossa realidade, expondo e explicando com a clareza devida os nossos problemas, que estão se generalizando com uma gravidade assustadora – é aqui que reside a nossa maior crítica à universidade pública do Brasil, pois essa é uma tarefa que ela deve assumir a inteira responsabilidade de executar.
 
Por conta desse quadro que se agrava – como dito –, os vínculos sociais vão se desmanchando: a escola para os pobres (as públicas e as privadas das periferias dos grandes centros) deixa de ser espaço de formação para se transformar em centro de recrutamento de agentes do crime; os estádios de futebol há muito deixaram de ser locais de socialização e diversão e transformaram-se em arenas de demonstração da segregação racial e social e de lutas corporais entre torcidas rivais; os presídios brasileiros são galpões onde pessoas são amontoadas e passam a padecer de todos os horrores já experimentados pela humanidade, principalmente no seu estágio mais primitivo em que o instinto e não a razão é o guia da sobrevivência; as chacinas em famílias viram fatos rotineiros do nosso dia a dia. Enfim, nos dias de hoje, matar parece ter significado de diversão; não precisa ter motivo aparente, basta estar desocupado e faminto; basta caminhar de mãos e mentes vazias. Por isso, somos uma sociedade que está com medo de ir ao trabalho, assim como medo de participar do lazer coletivo nos espaços e logradouros públicos; somos uma sociedade que está física e psicologicamente doente; somos uma sociedade segregada e em franco processo degenerativo.
 
É importante que as nossas deslegitimadas autoridades que dirigem o país –que não possuem o hábito de ler e refletir profundamente sobre os nossos problemas – que pelo menos tomem consciência de que, antes das mortes, houve o desprezo do mais forte pelo mais fraco; do mais rico pelo pobre; do branco pelo preto; do patrão pelo empregado; das instituições pelas pessoas a quem [essas instituições] devem servir e proteger; o desprezo, sobretudo, do Estado pela sociedade –, ou seja, do Estado pela parte pobre e necessitada da população. Vivemos um estágio da mais pura loucura! Hoje, ao contrário do que se pensa e faz em termos das políticas públicas, esse desprezo não o regenera, mas debilita-o mais ainda. Assim, de desprezo em desprezo, os infortúnios se generalizam, os vínculos sociais se desfazem e a degeneração biológica do homem pobre e degeneração institucional, social e moral passam a ser geral. Esse estado degenerativo está tão avançado que podemos estar chegando ao ocaso desta era!
 
Decerto que esse é um processo universal, mas os indicadores fundamentais mostram que o estágio brasileiro está bem mais avançado. Por outro lado, depois do profundo e amplo progresso científico e material da civilização, a situação que se vive hoje deveria ser apenas revisitada pela História e não como uma experiência de vida – pelo menos para a metade da humanidade. Refletindo melhor sobre os eventos recentes praticados pelas elites dirigentes, parece que estamos vivendo um tempo parecido com aquele que emergia dos escombros do feudalismo. Fazemos essa associação a partir da análise de Rousseau sobre a sociedade europeia dos séculos XV ao XVIII (período em que se instala o absolutismo), principalmente no excerto do capítulo I (A Vontade Geral é Indestrutível) do Livro IV:
 
Quando... o vínculo social começa a afrouxar e o Estado a debilitar-se, quando os interesses particulares começam a se fazer sentir e as pequenas sociedades a influir sobre as grandes, o interesse comum se altera e encontra oponentes, a unanimidade já não reina nos votos, levantam-se contradições, debates, e o melhor parecer não é admitido sem disputas.
 
Por fim, quando o Estado, à beira da ruína, já não subsiste senão por uma forma ilusória e vã, quando o vínculo social se rompeu em todos os corações, quando o mais vil interesse se pavoneia impudentemente com o nome sagrado de bem público, então a vontade geral emudece e todos, guiados por motivos secretos, já não opinam como cidadãos, como se o Estado jamais tivesse existido, e fazem-se passar fraudulentamente, sob o nome de leis, decretos iníquos cuja única finalidade é o interesse particular (ROUSSEAU, 1996, p. XX).
 
Como sair dessa encruzilhada? O primeiro ponto é compreender que o “faz de conta” da política pública que chega ao cidadão não é por incompetência técnica daqueles que a concebem e executam, mas fruto de um processo degenerativo que tem origem na cúpula que formula as políticas, que fazem as leis que protegem os seus interesses e que manipulam o orçamento geral do Estado. Com isso, estamos dizendo que os trabalhadores contratados pelo Estado e lotados nas mais diferentes instituições do executivo, do judiciário e do legislativo têm amplas condições técnicas, psíquicas, ideológicas e morais para elaborar e executar um Projeto Nacional, nos termos propostos no Ensaio V
 
O segundo ponto é que a estrutura política de poder que comanda o Brasil não tem a menor condição de liderar esse Projeto Nacional, seja porque não tem legitimidade política (a forma de como chegou ao governo), seja porque lhe falta o artefato moral (os fatos da lava-jato e outros delitos), seja, ainda, porque essa nunca foi a finalidade política dessa súcia que governa a nação. Essa falta de condições decorre – como já dita à exaustão nos ensaios anteriores – das alianças espúrias de poder que constroem laços indesatáveis, impedindo que haja qualquer tipo de mudança na política de natureza puramente neoliberal que está sendo implantada entre nós há mais de três décadas e produzindo resultados cada vez mais desastrosos – esta é a fonte originária de toda essa degeneração do Estado. E o grupo que está, neste momento, no poder, mesmo sabendo que dificilmente terminará o mandato, parece levar a termo as reformas neoliberais, radicalizando nas proposições: depois de aprovada a PEC. 241/55, estão em andamento as reformas da previdência, reforma trabalhista, restrições ao judiciário, a reforma tributária, entre outras. Tudo isso não em nome do interesse nacional, mas do capital e dos seus próprios. No capitalismo, a lógica é de quem deve tem que pagar a conta. E os administradores políticos sempre pagam as suas contas através do orçamento do Estado (dinheiro do povo), concedendo favores ao capital que lhe pagou o pedágio na estrada que os leva ao poder.
 
Nestes termos, a conclusão é que o Estado e, por consequência, as relações socais estão em rápido e irreversível processo de degeneração e o governo, pelas razões apontadas acima, sem qualquer condição administrativa, política e moral para revertê-las. A chance nossa será eleger imediatamente um novo governo e construir um pacto social fundado em um Projeto Nacional, no qual os interesses do capital estejam subordinados aos interesses do futuro do Brasil. Do contrário, se a aliança conservadora apostar num acordo por cima, preservando sempre os interesses primordiais das elites, independentemente de qualquer outro interesse ou circunstância, acreditando no caráter cordial, generoso e bondoso do brasileiro, vai perder categoricamente. O pobre, desocupado e faminto, que caminha com mãos e mentes vazias, tenham certeza, há muito perdeu a cordialidade e a generosidade. Estúpidos incrédulos, este pobre desocupado e faminto já está morto; agora ele está falando pela boca e agindo pelos braços de seus filhos e netos!
(1) Reginaldo Souza Santos é doutor em economia pela UNICAMP, professor do NPGA da Escola de Administração da UFBA e bolsista do Programa de Desenvolvimento Científico Regional do CNPq/Fapeal/Ufal, Campus de Arapiraca.
 
(2) Professor Associado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da UFAL. 
 
REFERÊNCIAS
 
DESIDÉRIO, E. Elogia da Loucura. Porto Alegre: L&PM Editores. 2003; p. 100.
 
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes. 1996.
 
SANTOS, R. S.; GOMES, F. G. Ainda sobre a pesquisa em Administração. Apresentação.  Revista Brasileira de Administração Política. São Paulo: vol. 7, n. 1: 7-10. Hucitec. Abr. 2014.
 
S.; RIBEIRO, E. M.; BARRETO, E. F.; BARRETO, M. G. P. O Expediente: a dimensão esquecida da administração política. Organizações & Sociedade(Online), v. 16, n. 49: 373-388. Abril/Junho 2009.
 
SANTOS, R. S. Manifesto da Administração Política para o Desenvolvimento do Brasil. (Garanhuns – PE). Salvador, janeiro de 2010.

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