terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Mulheres no poder.

 


Foi pungente ver uma mulher assumindo a presidência, sempre ocupada por homens. No desfile de posse, avistamos uma mulher, tão somente acompanhada da filha. Pela primeira vez, não era um homem que tinha a faixa presidencial; era uma mulher que acenava do carro, que passava pela esplanada de Brasília.

Certamente, esta imagem foi perturbadora para o conservadorismo, que mostrou toda mesquinhez e brutalidade que possui, em toda a governança da presidenta.

A carga de ódio, a violência de gênero contra a presidenta, pode ser bem representada no chocante adesivo que circulou em redes sociais, que tinha como ideia ser colado no carro, no compartimento de introdução de combustível, com a figura da presidenta, de modo que ela aparecia de pernas abertas, aduzindo à penetração da bomba da gasolina, em referência à mais brutal violência que uma mulher pode sofrer: o estupro.

Como salientou Mariana Boujikian, referindo-se à este fato: “O estupro é um processo de intimidação e demarcação de comando, e por isso tornou-se uma arma de guerra em diversos conflitos ao longo da História”. Assim, o adesivo explicita uma vontade de colocar Dilma em lugar subalterno, onde não tem nenhum controle. O adesivo passa uma mensagem perversa, pois reitera que mesmo que Dilma seja presidente da República, está ele sujeita à violência sexual, como todas as mulheres.

É indubitável que estamos falando de violência de gênero, pois nenhum presidente homem jamais sofreu qualquer ataque deste tipo. Impensável sugerir violência desta natureza contra FHC ou Lula. Infelizmente, contra Dilma a agressão é vista pelos agressores, com naturalidade, pois se trata de uma agressão de gênero”.

A violência neste caso, usado de forma simbólica contra a presidenta Dilma, é a violência contra todas as mulheres, é a violência nossa de cada dia, que se radicaliza e se agiganta diante de uma cultura sexista e misógina, arraigada na terra que pisamos a 516 anos. Tanto mais agora, diante de um congresso altamente conservador, que esta aliado ao poder executivo da mesma espécie, como demonstrado em sua primeira ação: a nomeação de seu ministério, no qual só tinha homens.

No Poder Legislativo, a exclusão da mulher é uma triste realidade. Conforme “Radiografia do Novo Congresso: Legislatura 2015-2019 / Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar”, temos apenas 51 mulheres de um total de 513 cadeiras, em que pese termos uma lei que assegura que ao menos 30% de mulheres devem estar nas listas eleitorais partidárias, norma ignorada até recentemente em vários estados, e sermos paritárias em relação à população.

E o mesmo acontece em relação ao Poder Judiciário.

Não posso deixar de lembrar, fato que já relatei outrora. Quando ingressei na magistratura, em 1989, um juiz não conseguia entender a possibilidade do cargo de magistrado ser ocupado por alguém do sexo feminino. Para ele, mulheres só poderiam pertencer ao quadro de servidoras, mas jamais juízas. Ele disse, em tom de deboche, que não concebia mulher judicando porque, afinal, Deus era homem e, assim, os juízes só poderiam ser do sexo masculino. Acrescentou, com o gesto de uma lactante: imaginem uma mamada entre um despacho e outro!

Ouvir algo deste naipe, no inicio da carreira, foi um choque: discriminação explícita, absolutamente verbalizada e soletrada, contra as mulheres juízas, que eram em número reduzidíssimo. Tal juiz estava imbuído da cultura machista, mas devo dizer, justiça seja feita, que na despedida da comarca, ele disse que a convivência fez com que ele mudasse de pensamento em relação às mulheres na magistratura.

Mas o fato é que temos vários dados que indicam a baixa intensidade do valor da igualdade, nas instâncias de poder e trabalho, que se relacionam com o mundo do direito, podemos afirmar, sem chance de errar:

O mundo do direito é ainda masculino. Vejamos alguns destes dados:

Até o fim de 1960, apenas 2,3% dos magistrados eram mulheres; em 2000, as mulheres representavam 30% e o levantamento de 2014 do CNJ indica que alcançamos os 36%, mas que nos tribunais superiores este índice fica reduzido ao patamar de 18%.

O Tribunal Superior do Trabalho foi o primeiro tribunal superior a ser integrado por uma mulher, e isto aconteceu apenas em 1990. No Supremo Tribunal Federal, a primeira vez que tivemos uma mulher na composição foi em 2000 e atualmente são duas. No Superior Tribunal de Justiça, o mesmo fato ocorreu um ano antes, em 1999.

Ainda na esfera do direito: nunca houve uma Procuradora Geral da República; nunca houve uma presidenta da OAB/Federal e nem da OAB/SP; nas associações de juízes, em sua maioria, não temos mulheres na presidência (nas associações trabalhistas a participação é maior). A AMB, entidade de caráter nacional que congrega o maior número de juízes, nunca teve uma mulher na presidência.

No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nunca tivemos uma mulher em órgão de direção e dos 360 desembargadores, apenas 48 são mulheres, sendo que a maioria ingressou pelo quinto constitucional (originárias do Ministério Público ou da Advocacia). Pelo concurso, o ingresso de mulheres teve início em 1981 e foi a conta gotas.

Importante ressaltar que as mulheres passaram a ingressar na magistratura de SP, pela luta das mulheres advogadas. Diria que nada caiu do céu.

Posteriormente tivemos ampliação no ingresso e fator de importância para tal foi a propositura da Associação Juízes para a Democracia, que em articulação durante a tramitação de um projeto de lei, defendeu e obteve a não identificação das provas de ingresso na magistratura, o que certamente possibilitou que as mulheres não fossem impedidas a participar da etapa oral.

Estes números não representativos de mulheres, nos nichos de poder e do direito, espelham o sexismo da sociedade brasileira de forma a criar um verdadeiro bloqueio, desde e sempre, para que elas não estejam em posição de igualdade. Fato este que se repete em várias dimensões e das mais variadas formas e aqui, apenas destacadas no tocante à participação numérica.

A falta do exercício contínuo da igualdade de gênero é que gera o caldo de violência que atinge todas as mulheres, de todos os cantos do Brasil. É por este motivo que tantas brasileiras são violentadas, a cada dia, a cada hora, a cada minuto , e das mais variadas formas.

A vivência que narrei, do início da minha carreira, mostrou como a cultura esta raizada, mas também mostrou que é possível a mudança em termos interpessoais. Mas sabemos, nós mulheres, que a transformação para uma sociedade igualitária está a depender, da luta das mulheres e especialmente das conquistas impostas no interior do Estado.

Sigamos adelante!


Kenarik Boujikian, juiza do Tribunal de Justiça de São Paulo, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia

Fonte: Justificando

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