segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O futuro (ainda) está em aberto.



1.
Política e economia mantém entre si relações complexas de reciprocidade.
Cai em erro quem queira analisar a política sem entendê-la como uma das esferas onde são criadas as condições para o funcionamento da economia, e erra ainda mais quem pretenda ver na economia a pura e única determinante da política, sem qualquer influência de outras esferas. As duas têm de ser compreendidas em conjunto, em especial quando se considera que o aparelho tradicional do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) é a esfera por excelência de relações intracapitalistas, e as empresas (nacionais ou transnacionais, micro ou gigantes, pouco importa) são uma forma ampliada de Estado, e são, por excelência, a esfera de relações entre capitalistas e trabalhadores.
conjuntura4Na política, especialmente na política palaciana, encontramos sintomas dos movimentos tectônicos das frações das classes capitalistas, de sua composição e recomposição constantes; na economia, encontramos as formas como os capitalistas agem em bloco contra os trabalhadores, de um lado, e contra outros capitalistas seus concorrentes, de outro. Vejamos o que é possível encontrar no momento.
2.
No caso brasileiro, que nos é mais próximo, o noticiário das últimas semanas parece indicar uma decomposição do governo Temer, abalado pelas denúncias que resultaram na renúncia de um de seus principais articuladores políticos, Geddel Vieira Lima, e pelas indicações de que o PSDB estaria abandonando o barco do governo em favor de eleições indiretas em 2017, visando um novo mandato presidencial para Fernando Henrique Cardoso até a realização das próximas eleições presidenciais diretas (ver aqui). Além disso, setores importantes do capitalismo nacional não estariam encontrando no governo temerário a criação de condições favoráveis para a retomada do crescimento econômico (ver aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Por outro lado, as manobras articuladas no Congresso Nacional em favor de uma anistia ao caixa dois das campanhas eleitorais ou de pressão no Poder Judiciário, a desconfiguração das “10 medidas contra a corrupção” e a Lei do Abuso de Autoridade indicam um medo dos políticos de novas prisões decorrentes da Lava Jato e outras operações correlatas, numa tentativa de salvarem a própria pele; a coletiva de imprensa concedida pelos chefes do Executivo e do Legislativo, em que afirmaram um compromisso público de barrar a anistia ao caixa dois, deu mostra do quão encurralados se encontram estes dois poderes.
As crises econômica e política que marcaram o segundo mandato de Dilma Rousseff, e que a fizeram cair, estariam ainda presentes e ameaçando o novo governo. Parte da esquerda está perdida com a questão de que Dilma faria o mesmo que Temer em diversos campos, variando apenas a forma como implementaria determinadas medidas. Mas então por que Dilma caiu? Teríamos duas conjunturas, uma política e outra econômica, que poderiam explicar essa situação? Ou teríamos o permanente entrecruzamento dos vetores políticos e econômicos dentro de uma mesma conjuntura?
conjuntura2A segunda vertente de análise é a mais plausível para entender o cenário atual. O vetor econômico se relaciona à inserção da economia brasileira na economia global, e o vetor político se relaciona ao modo pelo qual as classes capitalistas locais, ou suas frações de classe, planejam esta inserção, tendo como objetivo prático os mecanismos de repartição da mais-valia entre as empresas transnacionais, sejam elas de capital majoritariamente brasileiro ou estrangeiro (a origem de determinado capital é secundária para a análise que se faz aqui).
Os governos do PT, em pouco mais de uma década e com todas as suas contradições, executaram um projeto de inserção na economia transnacional — controle dos conflitos sociais por meio da sua canalização institucional “participativa”, inserção pesada no mercado internacional de commodities, parceria comercial com a China e estímulo ao consumo interno via facilitação ao crédito e isenções fiscais seletivas — que mostrou seus limites quando mudanças na conjuntura econômica global — principalmente as quedas nos preços de commodities e inviabilização temporária da extração do pré-sal — interferiram pesadamente na dinâmica econômica brasileira e o PT não soube, ou não quis, corrigir os rumos de outro modo que não o capitalista clássico: atacar os salários diretos e indiretos dos trabalhadores (via inflação e negociações salariais rebaixadas no primeiro caso, e via redução de recursos destinados a serviços públicos, no segundo caso) para garantir recursos para o prosseguimento da acumulação de capital.
Um dos pilares desse projeto, o afluxo de capitais provenientes da exploração do pré-sal pela Petrobras, foi minado tanto pelas ações judiciais que prejudicaram a forma de repartição da mais-valia na empresa adotada desde a década de 1990, quanto pelas grandes empresas petrolíferas internacionais, principalmente as de origem saudita, que forçaram o rebaixamento do preço do barril de petróleo para patamares inferiores a US$ 40,00, inviabilizando a rentabilidade da produção de petróleo em águas profundas, indicando, por um lado, o poder das empresas petrolíferas interessadas nessa inviabilização e, por outro, uma jogada política temporária que pode tornar no futuro o pré-sal viável novamente.
Outro pilar do projeto petista de inserção internacional que foi atacado diz respeito à viabilização das empresas transnacionais brasileiras na África e na América Latina, principalmente através da internacionalização do BNDES, que garantia os créditos necessários aos investimentos empresariais nos dois continentes. Tais medidas refletem a acirrada disputa entre empresas transnacionais, privadas ou públicas (pouco importa), na disputa por mercados emergentes: se provar o envolvimento direto de empresas transnacionais nas operações judiciais e policiais que resultam na prisão de membros do alto escalão de empresas como Petrobras e Odebrecht é matéria para as teorias da conspiração, é inegável, entretanto, que os efeitos destas operações afetaram enormemente o desempenho destas empresas (basta ver as últimas movimentações internacionais de empresas como Odebrecht, Petrobras, Camargo Correa, Andrade Gutierrez e outras investigadas para comprová-lo) e, por conseguinte, deixaram aberto o campo para a atuação de suas concorrentes. Isto num momento em que ocorrem fusões, compras e aquisições hostis em diversos níveis (basta ver a compra da Monsanto pela Bayer), indicando um patamar de concentração de capital poucas vezes visto na história. O capitalismo continua funcionando; as crises políticas vistas no Brasil, nos EUA, na Europa e na Ásia, entre outros fatores, podem ser reflexos de uma reorganização global dos polos mais dinâmicos de extração de mais-valia.
No campo dos partidos políticos que disputam o controle do Estado brasileiro, o PMDB, dentre os grandes partidos, seria o único que não teria um projeto próprio neste processo de inserção internacional. Tem sido historicamente caudatário dos projetos alheios do PSDB, primeiro, e do PT depois; o “Programa Ponte para o Futuro”, muito próximo ao projeto do PSDB, demonstra nova guinada de orientação do partido. O PMDB seria muito mais o garantidor da mediação nas esferas estadual e municipal dos projetos alheios de inserção da economia brasileira internacional do que, necessariamente, um ator político com projeto próprio — confirmam-no tanto a desorientação generalizada do governo temerário (que, não esqueçamos, herdou quantidade significativa de ministros e projetos do governo Dilma) quanto a presença de tucanos em postos-chave da gestão econômica e das relações internacionais.
Já o PSDB tem projeto próprio para esta inserção, e quer implementá-lo a qualquer custo. Ao que parece, aliás, do ponto de vista capitalista, o projeto do PSDB é o melhor para o momento. Esse projeto se manifesta principalmente no papel cada vez maior das empresas transnacionais de capital estrangeiro nas tomadas de decisão dentro do que podemos chamar de Estado Restrito (ou seja, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário). Tal proposta pode ser verificada no campo da produção da força de trabalho, com as reformas educacionais que estão em curso e analisadas aqui e aqui. Ou mesmo no campo da manutenção da saúde da força de trabalho, como analisado nesta série de artigos. Em uma situação de déficit fiscal do Estado e da possível alteração da constituição de 1988, restringindo o investimento estatal nos serviços que garantem a reprodução da força de trabalho (educação, saúde, previdência, assistência social), são esses capitais privados que preencherão o vácuo na tentativa de reativação e crescimento da economia nacional.
conjuntura3O que também está em jogo em meio a este turbilhão não é a presença de tal ou qual agrupamento político nos postos centrais do Estado, mas sim como os diversos ramos econômicos do país serão reativados ou mantidos nessa integração econômica mundial — e como isto afeta a vida dos trabalhadores. Devemos pensar quais empresas exploram determinadas jazidas de determinados minérios, desde os mais comuns aos mais raros, e que mudanças no regime de trabalho isto implica; como se constituirão as condições para o aumento da produção industrial do país e o enfrentamento da concorrência internacional (maior exploração dos trabalhadores? maior investimento em tecnologias?); como, e se, a produção agrícola continuará a garantir uma balança comercial superavitária; de que forma serão feitos os investimentos em infraestrutura, principalmente em logística e transporte, num momento de fortalecimento dos setores de logística que funcionam principalmente através de aplicativos, seja no transporte individual de passageiros ou no transporte de cargas.
3.
Parece haver no Brasil e no mundo uma nova configuração da classe trabalhadora. Na questão da migração, central nesta reconfiguração, a tão propalada xenofobia de frações da classe trabalhadora europeia e norte-americana resulta das conquistas (distorcidas) obtidas por estes trabalhadores durante a vigência do welfare state, da demolição paulatina destas conquistas nas três últimas décadas e do fato de estes trabalhadores, estimulados pela concorrência no mercado de trabalho a que são forçados pelos capitalistas, não quererem dividir com ninguém o pouco que ainda lhe resta. É um comportamento defensivo, não um ódio puro e simples. Não que o racismo esteja ausente deste comportamento defensivo, mas ele se integra a este “medo da queda” como um componente extra; o racismo certamente não teria tanta ressonância se estas frações da classe trabalhadora não acreditassem piamente que sua sobrevivência está ameaçada pelos migrantes.
As recentes votações a favor do Brexit (analisadas aqui e aqui) e de Donald Trump para a presidência dos EUA expressam reações dos trabalhadores a isto que lhes parece mais imediato, e representam a vitória de um programa que pressupõe um fechamento das fronteiras econômicas em relação ao movimento de globalização fortalecido principalmente a partir da década de 1990. Trump ganhou por causa dos votos maciços de trabalhadores agrícolas e blue collar, ao que dizem analistas (ver aqui, aqui e aqui). Pode-se dizer que o Brexit aconteceu por causa de certa tradição isolacionista dos trabalhadores ingleses (como, por exemplo, no caso da não adoção do euro, lastreada por Tony Blair num referendo que nunca foi realizado), mas os efeitos devastadores da globalização capitalista sobre a classe trabalhadora inglesa não devem ser negligenciados. A recente eleição de Alexander van der Bellen na Áustria demonstra que a tendência de vitórias da extrema-direita não é irreversível; e, no caso do Brexit, a disputa ainda está em aberto, como mostram as tentativas diversas de revogar a decisão plebiscitária por via judicial e parlamentar. Mas serão certamente as eleições francesas e alemãs do ano que vem que darão o tom ao resto da eurozona. Se recordarmos que o padrão de vida de um trabalhador qualificado europeu ou estadunidense é parecido com o da classe média tradicional no Brasil, temos aí um paralelo interessante. Não uma igualdade, mas um paralelo, que poderia indicar os motivos de uma reação mais conservadora aos cenários de crise econômica e política que atravessam diversas regiões do mundo.
conjuntura1Vale para todos eles a mesma questão que propusemos no início do texto: como pretendem se integrar à economia internacional? O protecionismo é uma forma de inserção, tanto quanto o livre-comércio. Resta ver, em cada caso, que setores sairão protegidos e quais setores não serão. Em cada caso, quem ganha com isso? Afinal, ninguém que esteja integrado aos altos círculos da economia e da política mundiais faz nada sozinho, nem tampouco é economicamente suicida. O que fazem é apostar num ou noutro cenário, e que o cenário em que apostam favorecerá os interesses dos setores que representam.
4.
Algo, entretanto, parece ser estranhamente comum a esta onda da extrema-direita: a imprensa internacional tem qualificado indistintamente como “Populistas” figuras tão díspares quanto Marine Le Pen e Nicolás Maduro, Norbert Hofer e Evo Morales, Nigel Farage e Pablo Iglesias, Frauke Petry e Cristina Kirchner. Há quem diga, sem falar explicitamente em “populismo”, que as medidas protecionistas de Trump são muito próximas do programa de Dilma Rousseff (ver aqui, aqui e aqui e aqui). “Populista”, portanto, parece ser quem busque esta inserção protecionista na economia internacional, pouco importa se tem origem na esquerda ou na direita; pode ser, também, por outro lado, quem proponha soluções imediatas e cativantes (ver aqui). Em todos os casos, categorias vazias de enraizamento político-social são empregues para tecer um saco de gatos.
Este assim chamado “populismo” parece originar-se numa reação dos trabalhadores contra os chamados “males da globalização”: desemprego em massa, perda de direitos trabalhistas e previdenciários, precarização, proliferação da terceirização como principal forma de contratação etc. Parece reeditar-se, deste modo, um cenário já visto décadas atrás: o travamento das economias nacionais na sequência de uma crise econômica internacional profunda leva a soluções políticas autoritárias, nacionalistas (quando não xenófobas) e conservadoras, e a soluções econômicas protecionistas e autárcicas. Seria muito fácil adjetivar esta direita como fascista, mas o uso de um conceito histórico com um adjetivo serve mais para ocultar a visão do que para explicar algo. A repetição da história é mero artifício retórico, pois ela não se repete nunca, nem como tragédia nem como farsa; é constante invenção de novas práticas com base naquilo de que se dispõe à mão no momento, econjuntura6 é isto que é necessário analisar com calma e precisão em meio ao turbilhão de fatos.
E o que há de novo neste contexto?
Em primeiro lugar, o funcionamento de uma economia capitalista globalizada não está travado; pelo contrário, vivemos sob plena hegemonia das transnacionais e dos órgãos internacionais de governança financeira (FMI, Banco Mundial, OCDE, Fórum Econômico Mundial etc.) e com funcionamento normal de órgãos globais e regionais de governança política (ONU, Parlamento Europeu etc.) e assistência humanitária — o que significa dizer que as classes capitalistas, por mais nacionalista que seja o discurso de alguns de seus representantes, estão mais globalmente integradas do que nunca. Mesmo durante a crise de 2008, cujos resultados retardados ainda se fazem sentir, o que se viu foi uma ação rápida e internacionalmente concertada entre empresas e Estados para conter seus efeitos nos polos mais dinâmicos de extração de mais-valia. Em segundo lugar, não está presente no contexto atual a situação de “terra arrasada” vivida pela Europa nos primeiros anos do entreguerras; pelo contrário, a política de terra arrasada tem sido aplicada em regiões como o Oriente Médio e a África numa disputa acérrima por recursos naturais. Em terceiro lugar, a crise migratória decorrente da guerra na Síria é um problema humanitário sério, mas no contexto europeu não passa de um bode expiatório. A vasta maioria dos migrantes sírios (4,8 milhões) radica-se em campos de refugiados em países vizinhos como Egito, Iraque, Jordânia, Turquia e Líbia, enquanto cerca de 900 mil deles pediram asilo em 37 países da Europa (ver aqui).
Há outros fatores, mas estes chamam de imediato a atenção. Será preciso muito mais esforço analítico coletivo para entender a atual situação política e econômica internacional do que o cômodo refúgio nas frases feitas dos textos clássicos. E é a este esforço coletivo que convidamos você, que terminou de ler este texto, a contribuir na seção de comentários.
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