segunda-feira, 9 de março de 2015

CHE: MORTE, VIDA E REVOLUÇÃO NA BOLÍVIA.




Edição de texto: Lucas Reginato

Reportagem que a Agência Plano fez a partir de uma entrevista com o homem que prendeu Che Guevara, Gary Prado, ex-general do exército boliviano que numa tarde de julho de 2014 cedeu essa entrevista em sua casa, em Santa Cruz de La Sierra.

- Eu valho mais para vocês vivo do que morto.

Foi a frase completa que ele me disse, relembra hoje, quase cinqüenta anos depois, o ex-general do exército boliviano Gary Prado. Na época, era comandante da companhia de forças especiais responsável pela operação que prendeu o guerrilheiro em outubro de 1967. A luta do argentino Ernesto Guevara de la Serna, mais conhecido como “Che”, estava acabada.

Essa guerrilha apareceu na Bolívia em um período que nós tínhamos um governo constitucional. O presidente [René] Barrientos havia sido eleito presidente com muito apoio, particularmente, dos camponeses. Aí aparece uma guerrilha cubana, argentina, peruana, e outros mais, a qual o partido comunista da Bolívia nega apoio.

No dia 3 de novembro de 1966, Che Guevara chegou a La Paz. O líder da triunfante revolução cubana de 59, inspiração de militantes mundo afora, escapava da burocracia boliviana com a identidade de Adolfo Mena Gonzáles. Escondia-se pelas ruas de La Paz como um homem de negócios uruguaio em missão para a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Estava em missão para uma ideia de mundo. Para uma Latinoamérica independente dos dólares que assombravam o Palacio Quemado, de onde comandava o presidente Barrientos, mas que não chegavam ao povo. Assim como fez quando foi ao Congo, uma determinação inconsequente o levou à Bolívia sem ser chamado. Convencido de que, com sua presença, viria o apoio para que a luta armada triunfasse também em território boliviano.

O ex-general aposentado Gary Prado comandava um grupo de militares que em 1967 conseguiu cercar a guerrilha comandada por Che Guevara na Bolívia e prender o maior ícone da revolução cubana socialista. Quase cinquenta anos depois, Prado recebeu a Agência PLANO em sua casa para uma entrevista exclusiva onde contou detalhes da operação. 

Os impulsos guerrilheiros eram calculados em mapas e planos perfeitos que culminavam numa sociedade igualitária. A Bolívia era um local estratégico para abrigar uma base guerrilheira no continente americano - dali teriam apoio as revoluções que florecessem ao seu redor. Teria o apoio do Partido Comunista da Bolívia, além da China e da União Soviética.
Mas o mundo real era grande demais para caber na tecnologia rudimentar de um combatente latino-americano. Em janeiro de 1967, sem resposta positiva do Partido local, muito menos de parceiros estrangeiros, Che e os vinte e poucos combatentes do Exército de Libertação Nacional (ELN) se viram sozinhos. E seguiram mesmo assim para o interior da Bolívia.

Ficaram sozinhos por aí, em uma área assim como o interior do sertão do Brasil. Em uma zona inóspita onde não conheciam. E não tinham mapas, não sabiam onde estavam.

O acampamento vermelho foi erguido pelo ELN em Ñancahuazú, no Chaco, o semi-árido boliviano, e vagou, por vezes errante, pela inexplorada região. Com algum êxito nos dois primeiros meses - diante da morte, comemoravam um passo à frente sobre homens sacrificados do exército do governo. Quanto mais mortos fardados maior a determinação da tropa oficial de capturar os terroristas. A pequena cidade de Vallegrande ficou alvoroçada ao receber a base de operações do exército.

Depois conseguimos montar uma estratégia e em seis meses terminar com o problema.

Gary Prado foi testemunha e algoz do inimigo derrotado, ferido, que outrora discursava no palanque da ONU. Certificou-se de que vivo permanecesse o prisioneiro e voltou à área de combate contra os sobreviventes. Os troncos das árvores do Chaco eram alvejados pelas rajadas trocadas, e os estalares dos tiros assustavam os animais.

Montamos uma operação com a qual conseguimos cercar o grupo guerrilheiro e praticamente exterminá-lo, sobrando apenas dois guerrilheiros, um deles Che Guevara.

As mãos que seguraram os rifles subversivos e as canetas que escreviam diários agora estavam atadas. Não podiam fazer mais que agarrar o pequeno fiapo de vida que Che pronunciava a seus algozes: “Valho mais vivo que morto”. Não viveria, de qualquer forma, tempo suficiente para ver erguer-se o sonho pelo qual foi condenado.
- Sei que você veio para me matar. Atire, covarde, você só vai matar um homem.
Assim que capturado, o celebre prisioneiro foi levado ao povoado de La Higuera, onde passou a noite de 8 de outubro dentro da única escola da região. Nos derradeiros momentos agoniava estar preso em uma escola, encarcerado em uma sala onde crianças da região poderiam ler o primeiro alfabeto, talvez algum dia sua própria história que o sargento Mario Terán, severo mestre ao entrar na sala, se dispunha a por fim.
Não adiantavam mais quaisquer planos mirabolantes que parcos sobreviventes do ELN pudessem tramar para salvar o líder. Na manhã de 9 de outubro de 1969, ao encarar o prisioneiro de 39 anos, Terán tinha a autorização de seus superiores, bolivianos e norte-americanos, para fuzilá-lo.

Quando voltei a La Higuera, ao meio-dia, fui informado que Che havia sido executado por ordens do governo. Foi uma execução sumária.

*

O Presidente Morales, dentro dos conhecimentos que tem, sabe muito pouco sobre a revolução cubana. Mas tem um retrato de Che no palácio do governo. Ia a La Higuera fazer homenagens e essas coisas. Então aproveitaram essa situação para fazer uma espécie de vingança.

Gary Prado, o homem que comandou a operação responsável por capturar o guerrilheiro Che no interior da Bolívia, é quem em entrevista exclusiva para a Agência Plano esforça-se para carregar o fardo que é ser uma espécie de arqui-inimigo do sonho revolucionário. O papel do ex-general nessa trama histórica tem implicações principalmente numa terra onde quem governa, assim como outros tantos milhões, faz do prisioneiro maltrapilho de La Higuera uma divindade.
Evo Morales assumiu a presidência da Bolívia no começo de 2006. O primeiro índio a estar no mais alto cargo em uma democracia de povo majoritariamente índio. Poucos meses depois, em junho, saiu do palácio Quemado, em La Paz, e viajou 700 km até a vilarejo de La Higuera para prestar uma homenagem a Ernesto Che Guevara.
- Agora, não são os povos que levantam as armas contra o império - bradou, firmemente, enquanto balançava a cabeça em desaprovação a Bush - o que estamos vendo é que é o império que levanta as armas contra os povos.
Como se fosse uma multidão à sua frente, o presidente aproveitava a pequena cerimônia protocolar para colocar-se como herdeiro do herói na luta contra o capitalismo. Sobre o terreno semi-árido do subtropical boliviano, discursava aos populares enquanto correspondentes das agências internacionais sublinhavam as palavras mais agressivas que fariam dele um ditador sanguinário.
- Se atacarem Cuba, Venezuela ou a Bolívia, estamos dispostos a enfrentar e defender também com armas a pátria, os recursos naturais e outras transformações sociais.
Aquele dia, 14 de junho de 2006, era anotado no calendário presidencial como o aniversário de Che, embora algumas das biografias relatem um erro no registro de nascimento do argentino. Por isso a viagem até o local onde ele fora capturado em 1967. A homenagem oficial incluía a inauguração do Consultório Médico Dr. Ernesto Che Guevara, instalado dentro da escola onde ele foi condenado com 8 tiros, e onde médicos vindos de Cuba atenderiam a população local.
- Vem muita gente da Europa e da América do Sul. Eles fazem a trilha até o lugar onde a guerrilha foi presa. Dormem nos hotéis por aqui.

O guia José perdeu a conta de quantas vezes viajou de Vallegrande, onde mora, até La Higuera. O serviço é arranjado desde Santa Cruz de La Sierra, na pequena rodoviária local, onde é oferecido por 400 pesos o pacote de ida e volta até Vallegrande, cidade mais próxima de La Higuera, com uma noite em albergue. O guia disponível, José, conduz os visitantes no próprio carro por um caminho de terra de quase 60 km. Faz o caminho de ida e volta, sem pernoite, por 230 pesos.
- Eu tento explicar para os donos desses estabelecimentos que eles precisam oferecer os melhores produtos. As pessoas que viajam até aqui querem consumir o melhor.
José estaciona o carro, fecha a porta sem pressa e sinaliza as pequenas casas que servem de hotel, abarrotadas nos dias 8 e 9 de outubro, quando a tradicional reunião lembra a morte do guerrilheiro. Algumas delas, segundo ele, passaram até a "oferecer água quente nos banheiros".

Fachada do Bar-Restaurante La Zania, em La Higuera, no departamento de Santa Cruz, Bolívia.

Na baixa temporada, o Bar-Restaurante La Zania é dos poucos lugares onde toma-se café da manhã sem estar hospedado nas casas que oferecem tal luxo. A dona segue de mesa em mesa, para servir  café e leite a todos os presentes e cobrar os 10 pesos da refeição. Turistas franceses enchem a varanda do lugar, conversam em voz alta enquanto mastigam pão caseiro com manteiga, queijo e presunto cru (este último item sugerido pelo guia José há alguns meses para incrementar o buffet).
- Está bem melhor.
José, contudo, lamenta que a oportunidade turística que é La Higuera, tão duradoura quanto o mito que teve lá seu calvário, não seja melhor aproveitada. Diz amenidades sobre a região enquanto, em alguns passos, leva o visitante ao Museu Che Guevara - o primeiro visitante do dia.
A atendente do La Zania é quem abre a porta e recebe 10 pesos pelo ingresso. No interior do casebre foram penduradas roupas e boinas deixadas pelos guerrilheiros, velhos artefatos de museus os instrumentos que antes vestiam os ávidos integrantes da Exército de Libertação Nacional (ELN). Espalhadas pela parede branca da pequena sala, mensagens em papeis grudados, escritas nos mais diversos idiomas. Para muitos, La Higuera é o mais próximo que se pode chegar do revolucionário.

Museu de Che Guevara no povoado de La Higuera, em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia.
Museu de Che Guevara no povoado de La Higuera, em Santa Cruz, Bolívia.

Na saída do museu, já é possível ver a estátua de Che, erguida na única praça do povoado. O semblante do heroi, monumental ali, é leve - um sorriso tímido e bochechas fartas, distante da imagem severa de tantas camisetas. E muito mais longe de sua imagem final, quando capturado fraco e maltratado pela guerra na região do Chaco boliviano.
Na escola onde ele foi executado, e que hoje também abriga o consultório, seis crianças tentam entender a lição de matemática. José aponta a sala onde um professor sorridente cumprimenta o visitante brevemente, para em seguida retomar a lição.
- Vocês são do Brasil? Entrem, fique a vontade - convida o maestro, sem tirar os olhos do livro que lê aos pequenos.
Mas ainda há o caminho de volta, e melhor retornar enquanto o sol ilumina a terra da Bolívia. José enumera as complicações de um passeio noturno enquanto dirige os primeiros metros da volta. Ressalta na estrada alguns locais por onde passou a guerrilha, estaciona o carro e pede que o visitante faça uma foto.
- Ta vendo aquela pedra grandona ali? Parece uma boina, né? Dizem que parece, até colocaram uma estrela vermelha no meio. Tudo aqui lembra Che.


Pedra no caminho para La Higuera adornada com estrela vermelha, representa a boina de Che.

*

Apesar dessa história de guerrilha e Che Guevara, que é algo secundário, eu tenho uma imagem no país. Fiz muitas coisas pelo retorno da democracia. O povo não acredita que eu esteja envolvido em nada de separatismo.

Por mais que Gary Prado, ex-general do exército boliviano, faça questão de ressaltar de sua vida profissional todos os feitos que não tenham sido capturar o maior líder revolucionário comunista do mundo em plena Guerra Fria, a sombra do guerrilheiro em seus últimos momentos insiste em retornar assiduamente. Foi, afinal, o que levou a Agência Plano até sua casa em Santa Cruz de la Sierra. Mas ele mesmo introduz o tema depois de três minutos de conversa.

Eu sou um general jubilado, retirado do exército há muitos anos, mas com muito prestígio aqui no meu país. E tenho em meu currículo, se quiser colocar dessa maneira, ter capturado Che Guevara, quando a guerrilha chegou a nosso país, em 1967.

Prado afirma que é por ostentar tal histórico que agora é réu em um processo judicial movido pelo ministério público da Bolívia, acusado de conspirar contra o governo de Evo Morales.
16 de abril de 2009 - por volta das 16h em Santa Cruz de La Sierra, um grupo de elite da polícia pôs em prática uma operação especial. Avançaram pelo saguão do Hotel Las Américas, conhecido reduto da elite local, e subiram até o 4º andar em busca de elementos de um grupo terrorista que estaria prestes a assassinar presidente e vice-presidente, além de promover a separação de Santa Cruz do resto do país.
Eduardo Rozsa Flores, de 49, foi identificado o líder do grupo e assassinado, assim como o irlandês Michael Dwyer, 24, e o romeno Arpad Magyarosi, 39. Rozsa, de origem boliviana, estava fora do país há alguns anos. Estudou linguística e literatura em Budapeste, trabalhou como jornalista na Guerra dos Balcãs, no início dos anos 90, e logo trocou a caneta por um rifle para defender a independência da Croácia frente o exército iugoslavo.

Em 2008, estava na Hungria, terra de seu pai, quando, em setembro, deu entrevista para a TV pública local relatando as fases de sua vida - depois de jornalista e combatente, foi ator e escritor de filmes pela Europa. Mas pediu ao entrevistador Andras Kepes que guardasse a entrevista para quando retornasse da Bolívia, porque a ele revelou sua nova obsessão política: “Declarar independência de Santa Cruz e criar um novo país”.
Em outubro atravessou o Atlântico até Santa Cruz e procurou o general que capturou Che Guevara para uma entrevista. Em depoimento à Justiça, Gary Prado sustentou que Rózsa se identificou como jornalista e pediu para conversar sobre Che Guevara e a guerrilha. A entrevista foi concedida na casa de Prado, onde Rózsa voltou dias depois para entregar os exemplares da Kaput, publicação de Budapeste .

Por isso não gosto de falar mais com jornalistas. Ele se identificou como jornalista, como eu ia saber das suas intenções na Bolívia?

O trauma de Gary Prado se justifica porque, ao ter recebido Rozsa, se envolveu no processo contra o grupo acusado de tramar separação de um território nacional. O departamento de Santa Cruz é o estado mais rico e menos indígena da Bolívia. Líderes locais tentam se livrar do bolivarianismo de Morales desde a chegada do indígena à presidência, em 2006, e organizam movimentos juntos a outros estados ricos do leste, como Beni, Pando e Tarija.
Acontece que a região onde estão essas províncias, conhecida como "meia lua", concentra reservas de gás natural, recurso estatizado por Morales em 2006. A manobra do presidente injetou 2 bilhões de dólares na economia e ajudou, por meio de programas sociais, a tirar 2 milhões de pessoas da pobreza. Com o crescimento do mercado consumidor, a classe média aimara, etnia indígena boliviana, a mesma do presidente Morales, ascendeu no país.

E me incluiram na lista. Porque? Porque eu havia dado uma entrevista ao chefe deste grupo, que era um jornalista legítimo de uma revista na Hungria. Eu tenho a revista com a entrevista que foi publicada. E isto é tudo. Por isso estou submetido a esse processo.

Para Gary Prado, personalidades do departamento de Santa Cruz estão sendo perseguidas e presas arbitrariamente apenas porque se manifestaram contra a política de Morales.

Santa Cruz e outros departamentos se opunham às políticas do Presidente Morales. Políticas embasadas no modelo soviético, cubano, venezuelano. Um só partido político, com total controle das forças armadas, sem liberdade de imprensa, sem direitos humanos. O modelo que conhecemos e que fracassou na União Sovietica e que querem impor na Bolívia. O governo montou todo este operativo [policial "Hotel Las Americas] e trouxe esses estrangeiros para causar o problema, para acusar políticos, a diligência cívica e empresarial cruzenha de separatismo.

Nove pessoas estão presas desde o início das investigações, que começaram logo após a operação no Hotel Las Americas. Ao ex-general Gary Prado, enquanto aguarda veredicto, foi concedido o benefício de prisão domiciliar por conta de seu estado de saúde e idade. O governo acusa os réus de compactuarem e patrocinarem o grupo terrorista liderado por Eduardo Rozsa. Dentre as provas apresentadas pelos promotores bolivianos, está um vídeo, com áudio precário, onde Rozsa fala sobre um possível ataque a Evo Morales durante uma visita do presidente ao Lago Titicaca. Gary Prado não considera que as evidências apresentadas pelo governo sejam suficientes.

A operação do hotel foi feita sem um fiscal e sem autorização judicial. Foi uma operação atropelando direitos. Prenderam alguns cidadãos nos primeiros dias, violando seus direitos constitucionais. Tanto que o promotor que armou tudo isso, Marcel Sossa, está no Brasil e disse todas as irregularidades que cometeu. É evidente que está sendo uma coisa armada pelo governo para acabar com a constitucionalidade de Santa Cruz.

Em março de 2014, o promotor Marcel Sossa entrou no Brasil e protocolou pedido de refúgio, alegando perseguição política por ter conduzido as investigações por linha diferente da defendida pelo governo. O processo na Bolívia ainda está em aberto, e os dois últimos acusados devem ser ouvidos no início de 2015.
A previsão é que até o fim deste ano o julgamento seja concluído. Cruzenhos acusados tinham a esperança de que pudessem se salvar com uma possível eleição de Samuel Dória Medina, da Unidade Democrata, à presidente, mas, contudo, ele foi derrotado por Evo Morales, reeleito em outubro de 2014 com 61% dos votos.

Querem, de alguma forma, se vingar pela morte de Che.

É o fantasma de Prado. Ele se esquiva, aparenta não dar grande importância ao que fez em 1967. Durante a entrevista demonstra que prefere se defender das acusações do governo, criticar Evo Morales pela política instalada no pais, reclamar da perseguição ao empresariado de Santa Cruz. Com a gravadora desligada, entre as saudações de despedida, ele esboça um sorriso:

Vocês não querem uma foto com o homem que prendeu Che Guevara?

*



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