sábado, 16 de agosto de 2014

A escalada do ódio político no Brasil.



“Cinquenta (…) anos atrás [1957], um jovem fotógrafo do Arkansas Democrat (…) foi cobrir o primeiro dia de aula de um grupo de estudantes negros na maior e melhor escola média de Little Rock [Arkansas, EUA]. Esse pedaço de história ficou gravado no negativo de número 15.
Eram apenas nove os jovens negros selecionados pela direção do principal colégio da cidade, o Central High School, para cumprir a ordem judicial de integração racial no país. Segundo David Margolick, autor do recém-publicado Elizabeth and Hazel: Two Women of Little Rock (ainda inédito no Brasil), a peneira foi cautelosa. A busca se concentrou em colegiais que moravam perto da escola, tinham rendimento acadêmico ótimo, eram fortes o bastante para sobreviver à provação, dóceis o bastante para não chamar a atenção e estoicos o suficiente para não revidar a agressões. Como conjunto, também deveria ser esquálido, para minimizar a objeção dos 2 mil estudantes brancos que os afrontariam.
Assim nasceu o grupo que entraria na história dos direitos civis americanos como ‘Os Nove de Little Rock’. Eram todos adolescentes bem-comportados, com sólidos laços familiares, filhos de funcionários públicos e integrantes da ainda incipiente classe média negra sulista. Entre eles, a reservada Elizabeth Eckford, de 15 anos.
Os pais dos nove pioneiros foram instruídos a não acompanharem os filhos naquele 4 de setembro de 1957, pois as autoridades temiam que a presença de negros adultos inflamasse ainda mais os ânimos. Por isso, os escolhidos agruparam-se na casa de uma ativista dos direitos civis e de lá seguiram juntos para o grande teste de suas vidas. Menos Elizabeth, que não recebera o aviso para se encontrar com os demais e partiu sozinha rumo a seu destino.
De longe ela avistou a massa de alunos brancos passando desimpedidos pelo cordão de isolamento montado pela Guarda Nacional do Arkansas. Ao tentar fazer o mesmo, foi barrada por três soldados que ergueram seus rifles. Elizabeth recuou, procurou passar pela barreira de soldados em outro lugar da caminhada e a cena se repetiu. Alguém, de longe, gritou ‘Não a deixem entrar’ e uma pequena multidão começou a se formar às suas costas. Foi quando Elizabeth se lembra de ter começado a tremer. Com a majestosa fachada da escola à sua frente, ela ainda fez uma terceira tentativa de atravessar o bloqueio em outro ponto do cordão de isolamento.
Como pano de fundo, começou a ouvir invectivas de ‘Vamos linchá-la!’, ‘Dá o fora, macaca’, ‘Volta pro teu lugar’, frases proferidas por vozes adultas e jovens. Atordoada, dirigiu-se a uma senhorinha branca – a mãe lhe ensinara que em caso de apuro era melhor procurar ajuda entre idosos. A senhorinha, porém, lhe cuspiu no rosto.
Como não conseguisse chegar à escola, a adolescente então tomou duas decisões: não correr (temeu cair se o fizesse) e andar um quarteirão até o ponto de ônibus mais próximo. Um aglomerado de cidadãos brancos passou a seguir cada passo seu. Imediatamente às suas costas vinha um trio de adolescentes, alunas do colégio. Entre elas, Hazel Bryan: “Vai pra casa, negona! Volta para a África!’.
 Segundo o autor do livro centrado no episódio, foi este o instante em que a câmera de Will Counts captou a imagem que se tornaria histórica [vide foto no alto da página]. Hazel, de quinze anos e meio, não carregava qualquer livro escolar. Apenas uma bolsa e um inexplicável jornal. Ela não planejara nada para aquela manhã. Vestira-se com o esmero que era sua marca – roupas e maquiagem ousadas para uma adolescente daquela época – e arvorou-se de audácia ao ver tantos fotógrafos e soldados da Guarda Nacional. Nada além disso. O resto pode ser debitado à formação que recebera em casa – família de origem rural, ideário fundamentalista cristão, atitude racial aprendida com o pai (…)”
O relato acima foi escrito pela jornalista brasileira Dorrit Harazim, que já trabalhou na Veja, no Jornal do Brasil e na revista Piauí, que, em sua edição 62, publicou o artigo “Ódio Revisitado”, do qual você acaba de ler um trecho.
Em princípio, pode-se dizer que um artigo sobre ódio “racial” contra negros em um país de maioria branca não nos diz respeito. Contudo, a causa do ódio nunca é o mais importante. O ódio precisa de uma causa, qualquer causa…
Porém, basta que o leitor substitua ódio “racial” por ódio religioso, de classe social, político ou ideológico para ver que o mecanismo é sempre o mesmo. Começa com a formação de turbas incomodadas com portadores de diferença de “raça”, religião, classe social, naturalidade ou nacionalidade, opinião política ou ideologia.
O segundo passo das escaladas de ódio consiste na generalização contra portadores de diferenças como as exemplificadas acima. Todo negro, judeu, cristão, muçulmano, espírita, pobre, rico, nordestino, petista ou comunista passa a ser previamente definido com base em estereótipos.
O terceiro passo começa com a segregação voluntária dessas tribos conflitantes, que se distanciam conforme vão apurando a “razão” para não coexistir com quem não divide crenças, características físicas, estrato social ou posição geográfica.
O quarto passo do crescimento do ódio entre grupos é sua chegada aos meios de comunicação – antes impressos e depois eletrônicos. Provocações surgem entre grupos que controlam os grandes meios e os que não têm mídia – ou que, hoje, têm pequenas mídias graças à internet.
O quarto passo é o transbordamento para o mundo real do ódio virtual que se espalhou pelos meios de comunicação com a ascensão de líderes e figuras-símbolo a encarnar centenas, milhares, muitas vezes milhões ou dezenas de milhões de contrários. Esse ódio passa a se traduzir em trocas públicas de insultos.
O quinto passo começa tímido e, se não for interrompido, pode chegar ao sexto. Insultos e provocações já produzem agressões físicas aqui e ali. Inicialmente tidas como fatos isolados, muitas vezes adquirem proporções epidêmicas, como vem ocorrendo há mais de uma década na Venezuela, onde, mais recentemente, dezenas perderam a vida em confrontos entre grupos políticos pró e contra o governo.
Abaixo, um dos exemplos dessa exacerbação do ódio que o Blog colheu no Facebook horas antes de publicar este post.
No Brasil, a escalada do ódio cresce há 500 anos por conta da assimetria de renda em um país consumista ao extremo, no qual, sem dinheiro, o cidadão torna-se um pária, um símbolo de fracasso pessoal premeditado. Mas como tudo que é ruim pode – ou tende a –   piorar, eis que o ódio passa a decorrer da mais perigosa das divisões, a divisão político-religiosa-ideológica, origem majoritária das guerras.
O grande problema do brasileiro, neste momento, é assumirmos, cada um, nosso quinhão de responsabilidade por uma escalada do ódio que, para alguns, em lugar de ameaça representa prova de seu poder de contaminação da sociedade, a ser comemorado.
Outro jornalista brasileiro que deixou a Editora Abril é Fred Di Giacomo, que hoje toca um site chamado Gluck Project. Di Giacomo, recentemente, escreveu “A história do Ódio no Brasil”. Trecho do texto ilustra a tese deste post.
“ ‘Achamos que somos um bando de gente pacífica cercados por pessoas violentas’. A frase que bem define o brasileiro e o ódio no qual estamos imersos é do historiador Leandro Karnal. A ideia de que nós, nossas famílias ou nossa cidade são um poço de civilidade em meio a um país bárbaro é comum no Brasil (…)”
Poucos de nós são responsáveis pelo ódio político que tanto cresceu no país, mas boa parte de nossa sociedade é responsável por ter aderido a ele. Vale para o que espalha provocações na internet, vale para o que se deixa contaminar por elas e responde à altura.
Nos ambientes minimamente adequados ao debate político, vá lá que as coisas acabem esquentando. O problema é quando o ódio político ultrapassa qualquer limite aceitável e passa a ser espargido onde é, no mínimo, inaceitável que exista.
Mais de uma dezena de horas antes de compor o texto abaixo, seu autor teve uma experiência pessoal – e assustadora – com o crescimento do ódio político que fatores variados – e mais adiante elencados – produziram no país. O texto a seguir foi publicado por este que escreve em sua página no Facebook.
Nunca vou parar de me surpreender com o potencial desolador da ignorância. Minha mulher participava de uma “comunidade” virtual de mães de meninas com síndrome de Rett (doença de [minha filha] Victoria) e essas mulheres começaram a postar sem parar acusações ao PT de ser responsável pela morte de Eduardo Campos por o partido ter o número 13 e o falecimento ter ocorrido num dia 13.
Minha mulher protestou contra esse absurdo e recebeu de volta uma saraivada de insultos. Mas o que é mais impressionante é que mães de meninas com doença igual à de minha filha começaram a atacar a menina perguntando se ela também “é petista” e dizendo que até imaginam que “tipo de mãe” minha mulher deve ser, sendo “petista”.
A que ponto chegamos? Conseguiram envenenar este país ao impensável. Essas mesmas mulheres xingavam Dilma furiosamente e apelando para insultos que são sempre usados contra mulheres usando a própria condição femina – puta, vaca, vadia, vagabunda, prostituta, sapatão etc., etc., etc.
Ver mães de crianças especiais atacando crianças especiais por política, ver mulheres usando o mais vil recurso do machismo contra mulheres, tudo por causa de política, dá vontade de chutar tudo pro alto e fugir pro outro lado do mundo, bem longe dessa loucura que essa direita assassina, que jogou o país em 20 anos de ditadura, trouxe de volta para a nação
O desabafo (justificável pelo que relata), porém, não deixa de ser uma pitada de combustível na escalada do ódio ao debitar a um grupo ideológico (a direita) o comportamento espantoso de seus personagens. Mesmo sendo verdade, poderia ter feito o desabafo sem aumentar o potencial de conflagração que encerra naturalmente? Reflito que poderia, sim…
Para não acusar a terceiros, o blogueiro acusa a si mesmo na esperança de que cada um faça o mesmo, caso enxergue o crescimento do ódio no país.
Alguns dirão, com propriedade, que a grande imprensa, ao tomar partido político, levou a situação a esse ponto. Não há dúvida de que é culpada por exacerbar o ódio político no Brasil desde o advento da República, mas não se constrói uma casa sem tijolos. Se a mídia é construtora, quem são os tijolos dessa escadaria do ódio que estão edificando?
Em outras palavras, a mídia não poderia edificar essa escalada do ódio no Brasil se não tivesse farta matéria-prima. O mais dramático é que há tanta dessa matéria-prima espalhada por aí que não se sabe mais como recolhê-la em quantidade suficiente para que falte aos entusiasmados construtores do ódio. Nesse aspecto, sugestões serão mais do que bem-vindas. 

http://www.blogdacidadania.com.br/2014/08/a-escalada-do-odio-politico-no-brasil/


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Nem a família de Campos esperou ele ser enterrado.




Por volta das 12 horas de quarta-feira, 13 de agosto, o site Brasil 247 noticiou em primeira mão: “Campos pode ter sofrido desastre aéreo em Santos”. Cerca de meia hora depois, a mídia em peso referendava o “furo” daquele site.
A referência à primeira notícia a dar conta da morte do ex-governador de Pernambuco serve para situar temporalmente o leitor sobre quanto demorou para surgirem especulações políticas sobre a tragédia.
Às 14 horas em ponto, este Blog publicou post em que apontou o óbvio sobre como ficaria a candidatura do PSB à Presidência e também lamentou a morte de Campos. O texto apontou a inevitabilidade de Marina Silva substituir o cabeça-de-chapa, ora falecido.
Apesar do tom respeitoso do post, que não descuidou de lamentar e até de elogiar a candidatura do falecido pelo que tinha de positivo para o regime democrático por estimular o debate sobre o país, alguns leitores, aqui nesta página, no Facebook e no Twitter, afetados pela intensidade da tragédia, ponderaram que a publicação da análise, naquele momento, seria inapropriada.
Vale dizer que alguns desses leitores também são amigos pessoais. Uma amiga, inclusive, ficou tão contrariada com o post que chegou a insultar o signatário desta página.
Cerca de uma hora depois, este que escreve difundiu, nas redes sociais, notícia que mostrou que não havia como impedir ou postergar aquela análise política sobre Marina Silva substituir Campos simplesmente porque sua própria família, possivelmente antes deste Blog, já pregava que a candidata a vice na chapa do falecido assumisse o lugar dele.
Às 15 horas e 16 minutos – cerca de duas horas após a confirmação oficial da morte de Campos –, o portal do jornal O Globo publicava a matéria “Irmão de Eduardo Campos quer que Marina seja substituta em chapa do PSB”.
Entre a apuração da notícia e a sua publicação na Web, pode-se calcular que o irmão do falecido tratou de política com a imprensa logo após saber da fatalidade.
Uma amiga que condenou a análise feita pelo Blog sobre a pressão que haveria para Marina substituir Campos chegou a pôr em dúvida a notícia de O Globo, que mostrava que o irmão do falecido tratara do assunto da substituição do candidato do PSB antes de qualquer outro.
À noite, no Jornal Nacional, aparece Antonio Campos, membro do PSB e irmão do falecido. De forma lamentável, misturou política com a fatalidade e praticamente pediu votos para o substituto do irmão ao pedir que as pessoas “reflitam”, como se a fatalidade revelasse que Campos era o melhor candidato.
Menos de dois dias após a morte do candidato do PSB, na primeira página da Folha de São Paulo sai uma notícia chocante, como manchete principal: “Família de Eduardo Campos quer candidatura de Marina”.
Detalhe: o falecido ainda nem foi enterrado, até o momento em que este post foi publicado.
Como se vê, especulações sobre quem substituiria o candidato que acabara de morrer chocaram muita gente. Amigos e leitores que ponderaram que seria “fora de lugar” este Blog fazer uma análise política – ainda que profundamente respeitosa – tão cedo, apoiam Dilma Rousseff. E mesmo assim ficaram contrariados.
Para que se possa mensurar como está sendo considerado inconveniente tratar tão cedo da substituição da candidatura do PSB a presidente, vale visitar notícia publicada nesta sexta-feira (15/8) na coluna “Painel” da Folha de São Paulo.
Por mais que seja ingenuidade achar que um abalo no quadro político dessa magnitude poderia esperar para ser discutido, já há indícios de que, assim como a derrota do Brasil na Copa de 2014 não influiu na política, a morte de Campos tampouco irá operar grandes alterações na disputa eleitoral.
Espertos, Marina e o próprio PSB se recusam a tratar do assunto. O açodamento da mídia e até da família do candidato morto não está pegando nada bem. O que mais se vê por aí são críticas a que não esperem nem o falecido ser enterrado para tratarem do assunto.
Particularmente, este Blog julga que os blogueiros e os grandes meios de comunicação que já começaram a tratar da substituição da candidatura de Campos logo após o anúncio de sua morte, não cometeram impropriedade.
O que está em jogo, neste momento, é o destino de 200 milhões de brasileiros; o Brasil está discutindo seu futuro. O que soa “fora de lugar” é a família de Campos se entregar ao assunto antes mesmo de ele ser enterrado.

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