sábado, 19 de janeiro de 2019

O Presidente deve compreender que agora governa para todos e não apenas seus seguidores em redes sociais.

 


Embora não se possa ficar surpreso que a primeira iniciativa mais relevante do governo Bolsonaro seja a alteração do decreto que regulamenta armas de fogo, no sentido de flexibilizar o acesso a armas num país que conta quase 64 mil assassinatos anuais, em sua imensa maioria cometido com armas, também é impossível não lamentar a ação do Presidente.

O Estatuto do Desarmamento é uma lei aprovada pelo Congresso Nacional em 2003, após amplo debate nacional que durou vários anos. O projeto começou a ser pensado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e foi sancionada durante o primeiro governo de Lula, ultrapassando gestões de orientação ideológico-partidária distintas. Após sua aprovação tivemos a primeira redução no índice de homicídios após décadas de crescimento contínuo. É verdade que os índices voltaram a crescer, mas numa velocidade consideravelmente inferior ao ritmo das décadas anteriores, demonstrando a efetividade da lei ainda que ela nunca tenha sido totalmente implementada e que muitos pontos relevantes nunca tenham saído do papel.

Ao longo dos anos o Estatuto foi alterado diversas vezes: novas categorias, como auditores da receita federal, foram incluídas no rol de segmentos profissionais autorizados a portar armas de fogo. Alvo de intenso ataque a partir do lobby da indústria de armas e munições, desde a aprovação do Estatuto, tramitaram no Congresso Nacional centenas de projetos com objetivo de alterar a lei, a maioria deles flexibilizando os requisitos presentes e facilitando o acesso a armas de fogo e, consequentemente, o faturamento das fabricantes de armas.

O Estatuto também foi alvo de mais de 10 ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, que confirmou a validade da lei. Também é alvo de informações falaciosas relacionadas ao referendo ocorrido em 2005: embora a população efetivamente tenha votado em sua maioria pela manutenção do comércio de armas de fogo, é mentira afirmar que o voto popular não foi respeitado e que a população tenha rechaçado o Estatuto. A consulta versava tão somente sobre um único artigo do Estatuto, relativo à manutenção do comércio de armas de fogo para a população civil, o que vem sendo absolutamente respeitado. Entre 2004 e 2017, o número de registros de armas concedidos a cidadão comuns pela Polícia Federal aumentou mais de 10 vezes. Aproximadamente 6 armas são vendidas por hora no Brasil para a população civil.

De fato, é prerrogativa do Presidente a regulamentação da legislação por meio de decretos. Entretanto, buscar uma alteração mais contundente das regras que regem o comércio nacional de armas sem o devido debate com a população é lamentável. O Congresso Nacional debate há anos alterações no Estatuto do Desarmamento. O debate parlamentar permite o acompanhamento e a supervisão por parte da imprensa e pela sociedade civil. Permite que diversos pontos de vista e opiniões sejam considerados e acordados. Buscar uma alteração tão relevante de forma unilateral, decidida entre quatro paredes e em contato com determinados auxiliares que não se sabe bem quem são não é condizente ao regime democrático que legitimamente aspiramos para o Brasil. 

Era dever do Presidente ter ouvido a sociedade neste tema tão relevante. Pesquisa recente do Datafolha demonstra inclusive, que cresceu o número de cidadãos contrários à posse de armas, sendo que este grupo sempre foi majoritário. O local deste debate é o Parlamento e não um gabinete específico do Palácio do Planalto. De toda forma, o Presidente não poderá alterar os pilares da lei por meio de decretos. Estamos vigilantes e não permitiremos qualquer invasão de competência do Poder Legislativo pelo Executivo. A Câmara Federal e o Senado deveriam impor sua independência e demarcar, de forma muito clara, os limites à atuação presidencial por meio de decretos. Que este não seja o primeiro de uma série de atos unilaterais da Presidência, que não considere a pluralidade e a diversidade que sempre caracterizaram o Brasil e cuja representação se encontra no Congresso Nacional.


Carta Maior


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