segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Busto de Rubens Paiva inaugura o “outro dia” na Barão de Mesquita.

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Por Ana Helena Tavares, jornalista, editora do site “Quem tem medo da democracia?”

Na sexta-feira, 12 de setembro de 2014, 50 anos após o golpe contra o qual Rubens Paiva protestou em rede de rádio, seu busto foi inaugurado, ao som do hino nacional, em praça em frente ao portão do antigo DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita (RJ), onde ele foi torturado, onde também meu tio foi torturado, onde tantos foram torturados (assistam a um minuto da histórica cerimônia)..=

Rubens Paiva, naquela praça, 50 anos depois.

Atualmente, ali funciona o 1º Batalhão de Polícia do Exército. Sentinelas armados por trás dos muros acompanharam imóveis a cerimônia, ouviram imóveis discursos inflamados. Ontem, o que eles falavam estava falado, cantava Chico Buarque. Mas hoje não. Hoje é “outro dia” na Rua Barão de Mesquita
E muitas pessoas que viveram aqueles sombrios dias estavam presentes para testemunhar este outro dia. Modesto da Silveira, advogado que mais defendeu presos políticos na ditadura, e que foi ele próprio torturado no DOI-CODI da Barão de Mesquita, estava presente. Ele defende que aquela praça ganhe outros bustos, que se torne um memorial.
Conversei, por exemplo, com Vito Giannoti. Italiano radicado no Brasil desde jovem, ele é hoje professor de Comunicação, especializado em jornalismo sindical. Na época da ditadura, era metalúrgico em São Paulo.
“Penso que essa inauguração é importante porque as pessoas, ao passarem por aqui, poderão querer saber quem foi essa pessoa e porque seu busto está aqui. E poderão entender que o que aconteceu não pode acontecer mais. Rubens Paiva foi um entre inúmeros casos de pessoas trazidas para cá (para o antigo DOI-CODI) e que depois sumiram. É preciso fazer com que isso acabe. E que não se julgue aquele período como normal. Não foi normal. Foi um período de extrema exceção, repressão e ditadura, incentivada por empresas e implementada pelas forças militares”, disse Giannoti.
Sobre sua experiência pessoal, ele lembrou: “Nós metalúrgicos lutávamos contra a ditadura e contra os caras que queriam a ditadura, os empresários. Contra a intervenção nos sindicatos e contra os caras que mandavam nisso tudo, os militares. Todos que lutavam contra isso eram ‘avisados’, presos, torturados. Eu mesmo fui preso e torturado em São Paulo. Meu terror, foi quando o capitão Albernaz, um torturador assassino, disse: ‘Tem gente do Rio nesse grupo, manda lá para a rua Barão de Mesquita’. Quando escutei o nome ‘Barão de Mesquita’, pensei: ‘Tô frito!’ Mas depois aconteceu um caso que eles acabaram se enrolando, e acabaram me dispensando. Mas quem veio para a Barão de Mesquita muita gente não voltou mais”.
Estavam lá familiares de muitos desaparecidos políticos. Conversei com Cristina Capistrano, filha de David Capistrano. Ela trazia na camisa o rosto do pai, que assim como Paiva era deputado. Mas Paiva era do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Capistrano era do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Capistrano tinha uma vasta experiência de guerrilha. Participou do Levante Comunista de 1935 e era um internacionalista que, ao lado de gente como Apolônio de Carvalho, lutou na guerra civil espanhola e também na França. A morte de Capistrano, em 1974, foi uma das mais brutais da ditadura militar brasileira.
O livro “Sem vestígios”, de Taís Moraes, conta que, após ser torturado no DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita, Capistrano foi levado para a Casa da Morte de Petrópolis, onde seu corpo foi esquartejado e os pedaços pendurados para terror dos outros presos. Não bastasse, depois disso, o que restou de Capistrano ainda teria sido levado para ser incinerado numa usina de cana de açúcar, segundo relato do ex-delegado Cláudio Guerra, no livro “Memórias de uma guerra suja”.
Olhando fixo em meus olhos, sua filha, que em 1974, época do desaparecimento do pai, tinha 24 anos, me disse ter ódio. “Eu tenho ódio, sem dúvida nenhuma, principalmente pelo fato de que, em 1974, o meu pai sofria um processo, que só foi concluído em 1978. Eles diziam que ele estava sendo julgado à revelia. Imagine! Já havia quatro anos que tinham desaparecido com ele! E foi absolvido! Olha a loucura! Absolvido depois de morto! Um escárnio. Não só com a política, com a legalidade, com qualquer preceito jurídico, mas com as famílias deixadas sem notícias. Chutaram completamente a Constituição deste país”, disse.
Conversei ainda com uma filha de Waldir Pires, que, em 64, era Coordenador do Curso de Direito da Universidade de Brasília, trabalhava com Darcy Ribeiro, e era Consultor Geral da República do governo de João Goulart. Rubens Paiva foi responsável por conseguir um aviãozinho, por montar toda a logística necessária para que Waldir Pires e Darcy Ribeiro, ministro da Casa Civil de Jango, saíssem do Brasil quando houve o golpe. Cristina Pires Duarte conta que seu pai e Rubens Paiva “eram muito amigos e estavam muito ligados às mudanças que o Brasil precisava”.
Cristina Pires tinha apenas 11 anos, mas diz que sempre foi muito ligada em política e lembra-se de tudo.“Meu pai e Darcy tiveram que levar gasolina de caminhão no colo, porque não tinham como comprar gasolina de avião se não chamariam atenção. Ouviram no radinho de pilha que Jango já não estava em território nacional. E foram para o Uruguai”. Ela ficou no exílio com o pai por cerca de um ano. Como seu pai não conseguia trabalho lá – “ninguém conseguia”, diz –, foram para Paris, onde Waldir Pires conseguiu lecionar por intermédio do economista Celso Furtado.
Josué de Castro, intelectual brasileiro genial, esquecido no Brasil e idolatrado na França, estava também em Paris naquela época e sua filha se apaixonou por um francês. Conhecido pelo bom humor, Waldir Pires teria dito a Josué que, se continuasse na França, também perderia um dos filhos para outro país. “E aí a ditadura teria vencido, era o que ele dizia”, lembra a filha. Contra tudo e contra todos, ele quis, então, voltar ao Brasil em pleno governo Médici. Mas não podia ser para Brasília. Nem para a Bahia, estado que ele viria a governar, mas que era governado por Antônio Carlos Magalhães, notório aliado da ditadura.
Voltaram para o Rio de Janeiro e, conta Cristina, “Rubens Paiva adotou todos nós, filhos de Waldir, para que nos enturmássemos no Rio. E ficamos todos muito próximos. No dia em que Rubens foi preso, meu pai e Raul Ryff (jornalista que foi assessor de imprensa do Palácio Laranjeiras e trabalhou no JB) passaram a manhã trocando ideias. Meu pai disse: ‘agora vamos…’ Ele e Raul levantaram. Rubens disse: ‘almocem aqui com a gente’. Meu pai disse que não porque tinha prometido almoçar em casa. Meu pai e Raul saíram. Meia-hora depois entraram na casa do Rubens e prenderam ele. Logo depois do almoço, ligaram pro meu pai, em mensagem cifrada, para avisar da prisão do Rubens ”.
Cristina diz que tem dois netos pequenos e o que ela quer é que eles conheçam a história deste país. “Uma pessoa como Rubens é um exemplo de solidariedade, generosidade, de luta. O Brasil precisa conhecer uma pessoa como essa. Precisa conhecer Josué de Castro. A História precisa resgatar para o nosso povo a memória desses homens exemplares”, conclui.
Conversei claro com a família de Rubens Paiva. Na correria, uma filha e uma sobrinha juntas, ao mesmo em que caminhávamos pela fatídica Rua Barão de Mesquita, me deram uma entrevista frenética. Eu queria saber sobre medo. Como a família lidou com o medo posterior ao desaparecimento?
“Não teve medo, teve muito espanto. Os meus avós (pais de Rubens Paiva) nunca entenderam. A coisa foi tão radical que todo o resto se tornou ‘a peace of cake’ (expressão que pode ser traduzida como ‘mamão com açúcar’). Todo o resto tornou-se fácil. Houve um dia na ECO (Escola de Comunicação da UFRJ) em que um menino tentou me roubar. Eu saí do carro e falei: ‘o que você quer?’ O menino acabou saindo correndo. Quer dizer, todas as situações de possível medo eu não tenho”, disse a filha Eliana Paiva, hoje jornalista. Ela contou ainda um episódio recente em que enfrentou com agressividade um garoto de rua que queria lavar o vidro de seu carro. Mas não recomenda tais atitudes. “Ninguém em sã consciência age assim”, ponderou.
A sobrinha, Inês Paiva, hoje psicóloga, prima em primeiro grau de Eliana, contou que na época, então uma adolescente, teve medo de participar de uma peça de teatro na escola, pois lhe podia acontecer alguma coisa por ser sobrinha de Rubens Paiva. Inês disse ter ódio por tudo o que aconteceu. Como psicóloga, afirma que vê torturadores como pessoas que “não sentem emoção no momento em que estão fazendo o trabalho deles”. Para ela, “loucura era aceitar entrar para o Exército naquela época”.
A filha, porém, não guarda ódio. “Eu tenho uma saudade tão grande do meu pai que supera qualquer ódio”, garantiu. “Ele era alegre, sociável, engraçado. Nós tínhamos uma avó que sempre reunia a família”. Em alguns momentos da cerimônia de inauguração do busto, foi dita a palavra “túmulo”, como se aquele fosse agora o túmulo que Rubens Paiva não teve. Eliana Paiva não vê bem assim. “Papai era tão vibrante que vejo aquele local como um local de vida”, assegurou. No entanto, o busto “não ficou parecido”, concordam as primas.
Na cerimônia, feita por iniciativa do Sindicato dos Engenheiros (Rubens Paiva era engenheiro) em parceria com a prefeitura do Rio, havia poucos jovens. Mas me deparei com dois. Um dizia ao outro: “Eu me sinto voltando ao passado”. Tive que intervir. “Você não está voltando ao passado. Você está vendo ser construído o futuro”, eu disse. Ele sorriu.
Lá de onde estiver o velho Ulysses Guimarães deve ter sorrido também. Afinal, a juventude é o que nos dá esperança de confirmarmos o que ele disse: “A sociedade é Rubens Paiva. Não os facínoras que o mataram”.

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