A morte do jornalismo.
Eu tinha 17 anos quando entrei para a faculdade de Jornalismo e sonhava em trabalhar na Veja. Eu sabia que gostava de escrever e que a VEJA era a maior revista do país, praticamente a única que quase todos tinham acesso e comentavam na minha cidade.
Nasci e cresci em Laguna, uma pequena cidade de Santa Catarina, o estado mais de direita do Brasil, numa época em que a internet não era nada perto do que é hoje. E as matérias da VEJA eram discutidas no colégio.
Chegavam a cair em provas, como “atualidades” e a Biblioteca disponibilizava um arquivo de Vejas para pesquisa.
Talvez por isso eu não me culpo, aredito que não tinha muita escolha.
Era uma cidade com uns 50.000 habitantes, e, que eu me lembre, todos acreditavam na VEJA.
Cheguei então na faculdade com esse pensamento e nas primeiras semanas de aula lembro que um professor pediu pra que nós elegêssemos nosso jornalista favorito. Mais de 80% da turma elegeu o Arnaldo Jabor e o segundo mais votado foi William Bonner.
Eu também era fã do Jabor na época, mas talvez para ser diferente, para aparecer, ou porque realmente eu pensava assim, escolhi outro: o colunista da VEJA, Diogo Mainardi.
Eu vibrava com as tiradas sarcásticas, o humor ácido e as frases curtas do Mainardi. Pouco me importava o conteúdo que eu não entendia direito, ou pior, eu concordava até os meus 17 anos. Ele falava de economia, política, filosofia e xingava o Lula. Lembro que era o que eu mais gostava: do jeito que ele xingava o Lula.
Era isso o que, na época, eu mais ouvia as pessoas fazerem em Laguna, e o Mainardi levava o xingamento a um outro nível.
Vale lembrar que o governador, os senadores, deputados e provavelmente a maioria dos prefeitos e vereadores de Santa Catarina eram do DEM, PP e outros partidos de extrema direita ou quase isso.
Santa Catarina sempre foi uma capitania hereditária da direita conservadora. Talvez porque lá a desigualdade nunca existiu como em outros estados, nem mesmo a escravidão, e ao invés de mão de obra escrava, o estado se serviu muito bem dos imigrantes europeus. Por isso os catarinenses são tão loiros e fazem tanto sucesso nos comerciais de margarina.
E talvez por não ter que lidar ou mesmo ver de perto a miséria extrema e a desigualdade obscena que afeta muito mais outros estados, nós, catarinenses, somos um povo tão despolitizado, tão rebanho de oligarquias direitistas e tão sucetível às manipulações grosseiras dessa mídia criminosa na qual eu queria trabalhar até os meus 17 anos.
Mas essas são talvez apenas as minhas desculpas por ter sido tão estúpido até essa idade e Santa Catarina é mesmo um estado lindo. Aécio também deve ter as desculpas dele para dizer, em entrevista com a mesma idade, que todos no Rio de Janeiro tem uma ou duas empregadas e que as mulheres não precisam trabalhar.
Mas é que a capa criminosa da VEJA dessa semana realmente foi demais para mim e eu senti a mais profunda vergonha por um dia já ter sonhado em trabalhar nessa revista. Vergonha por não ter percebido antes. Por ter algum dia sido cúmplice dos crimes que ela comete em defesa dos próprios interesses desesperados.
Se Dilma vencer no domingo, será a prova de que a VEJA acabou como revista de jornalismo.
Ela pode até continuar a existir, mas deve ser ensinado nas escolas e universidades que aquilo que ela faz tem outro nome, não é jornalismo.
Realmente não sei hoje como chamar, mas ainda espero que um dia chamemos de crime.
*** *** A estrada construida na gestão de Aécio nos arredores da fazenda de Roberto Marinho em Minas. *** *** O que pode e deve vir depois da capa da Veja.
Quando soube da capa da Veja, me ocorreu uma passagem que, algum tempo atrás, testemunhei em Londres.
Os tabloides foram avançando cada vez mais em métodos indignos, desonestos e criminosos na busca de furos – e com eles leitores e anunciantes.
Até que se soube que um tabloide de Murdoch, o News of the World, invadira a caixa postal de uma garota de treze anos sequestrada e morta.
Acabou ali a festa.
Em menos de uma semana, em meio a uma torrencial comoção espalhada entre os britânicos, o centenário News of the World estava fechado.
Logo, repórteres, editores e altos executivos de empresas jornalísticas delinquentes começaram a ser investigados, processados e, em muitos casos, presos.
Não demorou muito e se estabeleceu um consenso na sociedade britânica: a imprensa tinha que ser submetida a novas regras. O regime de auto-regulação, como mostrou espetacularmente o caso do News of the World, fracassara.
Agora, os arranjos finais das novas regras estão em debate. Os tabloides nunca mais voltaram a fazer o que faziam impunemente.
Enxergo no jornal de Murdoch na cobertura do sequestro e morte da garota inglesa a Veja nesta capa às vésperas das eleições.
Certas passagens trágicas, e este é o lado positivo delas, têm o poder de transformar coisas ruins que de algum modo vão se acumulando.
Uma hora um limite é rompido – e a opinião pública berra um basta do qual não existe retorno.
A Veja não vai deixar de circular imediatamente como o News of the World.
Mas, como ficou claro na reação de Dilma, uma história de muitos anos acabou com a capa desta sexta e outra história só não vai se iniciar caso Aécio vença.
O que chegará ao fim, se Dilma ganhar, é um pacto não escrito entre a imprensa e sucessivos governos.
Este pacto estabelece, basicamente, o seguinte. A mídia dá uma cobertura amiga. Não investiga corrupção, por exemplo. Projeta uma imagem de bem-aventurança generalizada. Protege o poder.
Em troca, as grandes empresas recebem dinheiro público em doses avassaladoras. É publicidade, é compra de livros didáticos, é aquisição de lotes de revistas, é financiamento facilitado em bancos públicos.
É, enfim, uma coleção interminável de mamatas que levaram os donos das empresas a terem algumas das maiores fortunas do país.
Com FHC, o pacto funcionou esplendidamente. Tanto que a compra de votos para a emenda da reeleição jamais foi investigada com seriedade.
Os problemas começaram com Lula.
É curioso notar que a ruptura do pacto foi unilateral: partiu da imprensa. Talvez em dose não tão grande, mas ainda assim absurdamente elevada, a bilionária publicidade governamental continuou a fluir para as maiores companhias jornalísticas.
A Globo, como passamos a saber depois que a Secom decidiu divulgar seus gastos, recebe anualmente 600 milhões de reais em verbas publicitárias federais.
Quando você acrescenta a aquilo tudo recursos de governos estaduais e municipais, não é exagero dizer que as grandes empresas de mídia são virtualmente financiadas com dinheiro público.
A novidade que surgiu na era PT é que a mídia descobriu que poderia continuar a mamar sem dar as contrapartidas que sempre ofereceu aos governos amigos.
Foi então que começaram a brotar colunistas dedicados exclusivamente a atacar Lula em todas as mídias: jornais, revistas, rádios, televisão, internet.
Para a mídia, era o melhor dos mundos. O que era uma guerra fria no começo se tornou logo um batalha aberta. Não raro, denúncias sem nenhum fundamento passaram a ser publicadas como se fossem verdades indiscutíveis.
Colaborou para isso a Justiça brasileira, complacente com os crimes da imprensa, ao contrário do que ocorre em sociedades avançadas.
E o melhor, para as grandes empresas: ao mesmo tempo em que atacavam ferozmente o governo, sempre recolheram, no final de cada mês, o Mensalão das verbas publicitárias desse mesmo governo.
Para a sociedade, esse esquema é uma calamidade. É como se ela mesma pagasse para ser enganada e manipulada por jornais e revistas.
O objetivo é perpetuar um situação em que uns poucos – a começar pelos donos da mídia – tenham privilégios assombrosos. Você não consegue entender a desigualdade brasileira se não entender este pacto entre mídia e governos.
Por que o PT não rompeu um contrato tão sinistro para o país?
Esta é uma grande pergunta.
Numa visão benévola, defendida por alguns petistas, por “republicanismo” – expresso numa expressão de consequências funestas para os brasileiros: “mídia técnica”. É como se a mensagem fosse a seguinte: “Sou tão correto que encho a Globo de dinheiro mesmo sabendo que esse dinheiro vai dar em Mervais, Jabores, Sardenbergs etc.”
Numa visão menos benévola, por medo. Por insegurança. Por temer que a retaliação dos barões da imprensa.
Deu no que deu: nesta capa da Veja.
Se essa capa representar o fim de um pacto tenebroso para os brasileiros, teremos, paradoxalmente, que ser gratos a ela.
*** *** Como funciona o ¨tráfico de notícias¨ da imprensa mineira censurada.
A repórter LVC trabalha numa grande publicação mineira. Ela contou ao DCM como funciona o “tráfico” de reportagens apuradas em Minas Gerais e que são repassadas para órgãos de imprensa do Rio e de São Paulo.
Em resumo: nas gestões de Aécio Neves e de seu sucessor Anastasia, ficaram vetadas matérias “negativas” sobre o governo. A pressão sobre a mídia, exercida principalmente por Andrea Neves — irmã de Aécio e responsável pela comunicação –, foi bem retratada em dois documentários: “Liberdade, Essa Palavra” e “Gagged in Brazil” (“Amordaçados no Brasil”). Ironicamente, a versão original dos dois filmes foi retirada do YouTube.
Diante da censura e do receio de demissão, a saída dos profissionais é “sugerir” para colegas de outros estados as denúncias. Na maioria das vezes, elas são publicadas. Na maioria. “A gente fica feliz por tabela”, diz LVC.
O depoimento:
O tráfico de matérias daqui de Minas para outros jornais foi a forma que encontramos para driblar a censura, que tomou uma dimensão inacreditável nos últimos anos.
A gente já sabia de muitas dessas histórias, hoje conhecidas, há muito tempo. O aeroporto de Cláudio, o nepotismo, os problemas na educação…
Somos proibidos de ouvir o chamado ‘outro lado’ nas reportagens envolvendo inimigos do governo. Em casos como o aeroporto, o Estado de Minas [o maior jornal local] e o Hoje em Dia nunca deram uma linha. Quando saiu alguma coisa, foi apenas a justificativa da assessoria de Aécio Neves. Só o jornal O Tempo fez a cobertura.
A história do Agnello Queiroz, por exemplo, foi entregue por um amigo meu à imprensa de São Paulo e Rio [um assessor do governador de Brasília Agnelo Queiroz, quando ele era ministro do Esporte, recebia propina de uma empresa que presta serviço ao GDF. O dinheiro abasteceria um caixa 2 da campanha]. Não podia sair nada porque Agnello é amigo de Aécio.
Também foi um colega daqui que passou adiante os documentos comprovando que assessores do gabinete de Aécio, quando senador, recebiam dinheiro em cargos de estatais mineiras. A Heloísa Neves, assessora de imprensa do Aécio, é uma dessas pessoas.
[Diz o Estadão: “Três servidores comissionados recebem, além do salário do Senado, remunerações por integrar conselhos de empresas do Estado, governado pelo tucano de 2003 a 2010 e agora sob o comando do aliado Antônio Anastasia (PSDB). Assim, turbinam os rendimentos em até 46%. Ninguém é obrigado a bater ponto no Senado e, nas estatais, são exigidos a ir a no máximo uma reunião por mês. (...)
Também assessora de Aécio, com salário de R$ 16.337, a jornalista Maria Heloísa Cardoso Neves recebe jetons de R$ 5 mil por mês da Companhia de Desenvolvimento Econômico de MG (Codemig) para participar, obrigatoriamente, de três reuniões anuais do Conselho de Administração. E, por vezes, de encontros extraordinários”.]
O mensalão do Arruda não foi noticiado por causa de suas relações com Aécio. Nós conversamos bastante com os correspondentes dos jornalões. A direção dos jornais daqui já suspeita de que isso acontece, mas não há nada que eles possam fazer.
Há orientações sobre fotos. As de Dilma têm de ser fechadas nela e, de preferência, ela não pode aparecer sorrindo. Depois que votou em Porto Alegre no primeiro turno, ela foi para a casa do ex-marido, o Carlos Araújo. O neto apareceu lá. Foi proibida a publicação da fotografia dela com o menino.
Com a candidatura do Aécio, o Estado de Minas passou a dar duas manchetes de política. São sempre favoráveis a ele. Toda a imprensa mineira funciona assim.
No Estado de Minas, houve uma rebelião e os jornalistas deixaram de assinar matérias em que os editores mudavam demais o texto. Fica como “Da Redação”. No Hoje Em Dia, personagens que os repórteres não ouviram estão sendo incluídos nos artigos.
Essa censura vale até para assuntos corriqueiros, coisas com que qualquer governante tem de lidar. Nem as greves de professores são repercutidas.
As fontes relacionadas ao governo de Itamar Franco foram banidas. Existe um índex, uma lista negra, de pessoas que não podem sair de jeito nenhum. Algumas delas são o Fabrício de Oliveira, economista que critica o “choque de gestão”; o Rogério Correia, deputado estadual pelo PT; o Padre João, deputado federal pelo PT; e o Sávio Souza Cruz, deputado estadual pelo PMDB.
Ocorrem armações. Uma vez, a oposição estava reclamando que Aécio estava passando tempo demais no Rio de Janeiro. O Estado de Minas fez uma foto dele, de manhã cedo, no Palácio da Liberdade, para dar a impressão de que o governador trabalhava muito.
Não há condições de continuar assim por muito tempo. O Aécio não aceita a mínima crítica. Tudo é controlado.
Existe por parte dos donos dos meios de comunicação um realismo maior do que o rei. Eles esperam que, com a vitória do candidato, a recompensa venha na forma de mais verbas publicitárias.
Quando o Aécio foi pego no bafômetro no Rio, saiu nota de pé de página só porque o clamor foi enorme.
No caso do aeroporto de Cláudio, nós sabíamos da obra há anos. A novidade, para nós, foi que a chave ficava com o tio-avô de Aécio, o Múcio. Isso porque nunca pudemos investigar nada in loco. Nem pensar em ir até lá.
O emprego de parentes é algo antigo por aqui. Mas a única informação recente sobre nepotismo na política que saiu em Minas foi sobre o irmão da Dilma, o Ygor Rousseff. Aí rendeu manchete. [Durante um debate, Aécio declarou que o irmão da presidente foi funcionário “fantasma” e recebia salário da prefeitura de Belo Horizonte “para não fazer nada”].
Um conhecido passou para a imprensa paulista a história da carteira da polícia que o Aécio conseguiu. A matéria acabou não sendo publicada [em 1983, aos 23 anos, Aécio obteve a carteira. Seu avô, Tancredo, era o governador].
O primo dele, o Quedo, é famoso. Quando ele foi preso, saiu uma notícia. Daí em diante, a ordem era para que todo o desdobramento do episódio fosse para apresentar a defesa [em 2011, o comerciante Tancredo Tolentino foi acusado de pedir 150 mil reais de propina para libertar traficantes de drogas. Ele teria dado o dinheiro ao desembargador Hélcio Valentim de Andrade Filho, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e alvo de ação penal no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Fantástico não mencionou o nome de Aécio].
A apreensão do helicóptero dos Perrella com cocaína seguiu a mesma lógica. Saiu a notícia. Em seguida, só matérias deles se defendendo. No caso do mensalão mineiro e do Eduardo Azeredo, é vetado usarmos a palavra “mensalão” [Aécio tem insistido que são mensalões “diferentes”: “Acho que com serenidade e muita transparência Azeredo terá tempo de apresentar seus argumentos e demonstrar que não há paralelo entre uma questão e outra", afirmou].
Nós somos obrigados a fazer esse jornalismo de guerrilha. É muito frustrante ter uma grande matéria nas mãos e ela ser censurada. Quando sai em outro lugar, ficamos felizes por tabela.
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TERRAS ALTAS DA MANTIQUEIRA = ALAGOA - AIURUOCA - DELFIM MOREIRA - ITAMONTE - ITANHANDU - MARMELÓPOLIS - PASSA QUATRO - POUSO ALTO - SÃO SEBASTIÃO DO RIO VERDE - VIRGÍNIA.
sábado, 25 de outubro de 2014
A capa criminosa da Veja dessa semana.
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