Aquela ilha rochosa bloqueada. Ainda assim não queria aquilo, porque para mim a liberdade é mais importante do que o pão. Para mim, que sou de classe média.
Por Gustavo Castañon*
A estratégia de criticar a esquerda no Brasil com base no regime cubano é tão, mas tão desonesta, que é difícil até explicar o tamanho da desonestidade. Mas vou tentar.
Primeiro, porque Cuba é ruim para mim, que sou de classe média alta. Mas para minha faxineira seria o paraíso. Cuba é para 100% de seus habitantes melhor do que qualquer país sul americano é para 70% dos seus habitantes. Aquela ilha rochosa bloqueada. Ainda assim não queria aquilo, porque para mim a liberdade é mais importante do que o pão. Para mim, que sou de classe média alta.
E é também por isso que não posso querer para mim uma sociedade monstruosa moralmente como os EUA, aquela plutocracia aonde o último traço de democracia que resta é a liberdade de expressão. Mas o problema é que o Brasil, meu Deus, o Brasil é uma monstruosidade social tão grande, tão maior, que querer que o Brasil se transforme nos EUA é querer transformações de esquerda. O dia que o Brasil tiver um salário mínimo como o dos EUA, uma distribuição de renda como a dos EUA, uma lei de mídia como a dos EUA, a proteção às indústrias e agricultura local como os EUA, um estado do tamanho do dos EUA, com a proporção de funcionários públicos que tem os EUA, a direita vai poder alertar para o risco de ele virar uma Alemanha. Por enquanto, ao invés de gritar: “O PT quer transformar o Brasil numa Cuba!” deveria gritar: “O PT quer transformar o Brasil num EUA!”.
E se o Brasil ficasse parecido com os EUA, ser de esquerda ia ser querer que o Brasil tivesse as políticas de salvaguarda sociais da Alemanha, a saúde pública da Alemanha, a educação da Alemanha, a carga tributária da Alemanha, o imposto progressivo (quanto mais rico, mais imposto) e relação com a propriedade privada que tem a constituição Alemã. E a direita deveria então gritar, se quisesse ser honesta: “Cuidado, o PT quer transformar o Brasil numa Alemanha!” (tudo com caixa alta, se for no Facebook ou num comentário no portal UOL).
E então, quando o Brasil ficasse parecido com a Alemanha, a direita poderia alertar para o risco de virarmos uma Finlândia. Aí, ser de esquerda seria querer que mais da metade da renda fosse para os impostos, que o estado bancasse dois anos de licença para criar um recém-nascido, limitasse fortemente a atuação das grandes corporações, considerasse crime dinheiro de empresas para campanha, tivesse políticas ambientais estreitíssimas, um quarto da população empregada do estado, fosse radicalmente democrático.
E aí, finalmente, quando o Brasil ficasse parecido com a Finlândia, o direitista poderia gritar sem ser hipócrita seu terror com a Cuba que se avizinha, a do estado total e economia planificada, e disfarçar melhor seu ódio ao funcionário público sob a máscara do ódio ao estado. Talvez nesse dia, até eu estivesse ao seu lado. Mas até lá, gritar contra Cuba é o mais puro exercício de ignorância e hipocrisia, os dois juntos. Uma máscara para ser conservador no Brasil e fingir ser a favor de algo como a liberdade e o mérito, enquanto o que se é mesmo é contra. Contra os direitos trabalhistas, o aumento da carga tributária, do salário mínimo, do tamanho do estado, da remuneração do funcionário público de base, das políticas de distribuição de renda, das novas oportunidades para os antes excluídos, contra o fortalecimento do SUS, o investimento na educação e universidade públicas e a redução dos juros. E ser tudo isso num pais escravagista como Brasil é simplesmente monstruoso. É também um problema moral, e não só político. E grave.
*Gustavo Arja Castañon é doutor em psicologia e professor de filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Colabora com o “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Non abbiate paura“.
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quinta-feira, 27 de novembro de 2014
Cuidado! A esquerda quer transformar o Brasil num EUA.
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