sábado, 29 de novembro de 2014

NO PAÍS DE LULA, O GRANDE CONCILIADOR.

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Debate sobre composição do segundo governo Dilma não pode ignorar experiência do mais bem sucedido presidente da história.


Os leitores do Brasil 247 tem o direito de festejar um fato raríssimo em nossa vida pública: um debate político franco, travado com ideias e argumentos, no qual a intenção de esclarecer se sobrepõe ao esforço nocivo de ganhar uma discussão de qualquer maneira.
Estou me referindo a polêmica aberta por Breno Altman, um bom amigo, articulista claro e corajoso, a respeito de meu artigo “Dilma tenta evitar armadilha de Jango.” Breno comentou com o texto “Dilma está diante da armadilha de Getúlio.” Estamos falando de lutadores, no sentido figurado e no literal.  Admirei Waldemar Zumbano, avô de Breno, que era técnico de boxe. Assisti a muitas lutas de seus tios, inclusive Eder Jofre, campeão mundial. Também li muitos textos de Breno, referência em diversos debates.
Tudo está disponível no Brasil 247. Aqui vai meu comentário:
Concordo com grande parte das afirmações de Breno Altman. Temos a mesma visão sobre a necessidade de proteger o bem estar dos trabalhadores e dos brasileiros mais pobres. No passado e no presente, nenhum de nós teve receio de assumir bons combates pela liberdade, pela Justiça, contra a criminalização das lideranças populares.
Mas creio que Breno Altman comete um erro essencial ao apontar a lógica da conciliação como uma espécie de desvio fundamental de grandes homens públicos brasileiros, como Getúlio Vargas e João Goulart.
Referindo-se ao Getúlio que deu o tiro no peito em 1954, ele escreve que, “mentor da estratégia” de conciliação, Vargas não entendeu, ou não quis entender, “talvez por sua origem de classe, que era preciso se preparar para um choque frontal contra os grupos reacionários” e “terminou isolado e enfraquecido, vítima da sanha dos homens oligarcas da terra, do dinheiro e da informação, mas também do tabuleiro político que havia desenhado, no qual a intervençãio dos trabalhadores e do povo tinha somente papel eleitoral.”
Quanto a Goulart, também conciliador, “manteve-se preso a determinados paradigmas herdados de Getúlio.” O problema de Jango, explica, era resistir em se preparar para uma “uma situação de ruptura, na qual as contradições costumeiramente se resolvem pela vitória da revolução ou da contra revolução.”
LULA, O GRANDE CONCILIADOR.
Acho que é impossível debater conciliação politica, no Brasil de 2014, sem discutir Luiz Inácio Lula da Silva, cujo espírito conciliador é um traço essencial de sua personalidade política.
Lula e seu espírito para negociar, ceder, avançar e ir em frente são parte insperável dos progressos que o país obteve nos últimos doze anos, quando o Brasil deu passos importantes — ainda que limitados — na formação de um Estado de Bem-Estar Social.
Estamos falando de acordos nascidos de vários pactos de conciliação — alguns selvagens, outros elegantes, muitos desastrados — entre a classe dominante tradicional e a direção do Partido dos Trabalhadores, onde Lula sempre assumiu um papel destacado e único.
Palavra associada, erradamente, a capitulação e recuo, a conciliação é um exercício fundamental na prática cotidiana das democracias, onde as instituições existem para conciliar — compatibilizar, harmonizar, as palavras são muitas — os direitos da maioria e proteger a minoria.
A adatação fácil a essa situação ajuda a entender o desempenho fora do comum de Lula na presidência da República. Sem perder sua referência de classe, que lhe garantiu o reconhecimento do eleitorado, ele não deixava de dialogar e mesmo fazer concessões a aliados, adversários e até inimigos.
Antes mesmo de vestir a faixa presidencial já se tornara amigo de infância de George W. Bush.
Refazendo um percurso ocorrido em vários países ao longo do século XX, autores como Tony Judt e Adam Przeworski relatam o que se pode chamar de grande conciliação universal desde a emergência dos trabalhadores na cena política européia.
Num processo diferenciado de um país a outro, a classe dominante aceitou abrir mão de uma parte de seus lucros para fazer concessões e benefícios aos assalariados, num grau de conforto que nenhum de seus profetas seria capazes de imaginar. Em troca, os trabalhadores concordaram em respeitar a propriedade privada, trocando a ideia de mudanças revolucionárias pelo respeito às regras do regime democrático.
Vivemos um país que, foi capaz de evoluir por negociação e também por ruptura. Um dos méritos da obra de Lira Neto sobre Vargas é mostrar que tivemos uma revolução de verdade em 1930, ao contrário do que sustenta uma historiografia da cordialidade. Boa parte de nossa legislação social é fruto desse período. Mas o país chegou a um momento essencial de sua história republicana, a Constituição de 1988, pela negociação democrática.
NOSTALGIA AUTORITÁRIA.
Olhando o ministério que foi empossado por Lula em 2003, com Antonio Palocci e Henrique Meirelles nos postos principais, Joaquim Levy no Tesouro, alinhados pela Carta ao Povo Brasileiro que falava em elevar o superávit primário até onde fosse necessário — como sugeriu o empresário João Roberto Marinho, da TV Globo — é obrigatório falar em conciliação.
Olhando os resultados, cabe perguntar: conciliação entre quem?
Era possível, na época, ler jornais que diziam que o medo tinha vencido a esperança.
Economistas ligados ao PT diziam que Lula havia superado o presidente argentino Carlos Menén na fidelidade ao Consenso de Washington.
Impaciente com a demora na reforma agrária, a CNBB anunciou sua ruptura com o governo.
Um grupo importante de parlamentares e de organizações que atuavam no PT aproveitou a reforma da Previdência para denunciar o governo e fundar o PSOL.
Hoje reconhecido como um dos maiores programas de distribuição de renda do planeta, o Bolsa Família era criticado como “política compensatória”, uma espécie de esmola institucional propagandeada pelo Banco Mundial. Também foi acusado — internamente — como fonte de corrupção, prestação de favores e clientelismo.
Maior feito econômico do governo Lula, a resposta a crise de 2008 foi um carrossel de negociações com empresários, sindicalistas, banqueiros e políticos. Conciliação pura.
No Brasil dos anos 1950 e 1960, a democracia não era vista como um regime respeitável por si — mas como caminho para uma revolução socialista ou uma sala de espera para golpes de Estado.
Considerava-se que, em função de seu atraso economico e perfil sociológico, o país não era capaz de alimentar regimes democráticos estáveis — nem possuía políticos à altura das necessidades da população. Lideranças populares, comprometidas com causas democráticas, eram tratadas com desprezo por estudiosos influentes de nossa vida pública. O professor Octavio Ianni, conceituado autor de O Colapso do Populismo no Brasil , costumava se referir ao sistema político como “democracia populista” — conceito-avô do “bolivarianismo” empregado hoje pelos adversários do PT.
Estudioso de uma geração posterior, em O Populismo na Política BrasileiraFrancisco Weffort, que anos mais tarde seria um dos fundadores do PT, escreveu: “Na impotência histórica da pequena burguesia está a raiz da demagogia populista. (…) por limitar-se às formas pequeno-burguesas de ação, o populismo traz em si a inconsistência que conduz inevitavelmente à traição.”
Essa visão mudou. A fraqueza da democracia liberal do pós-Guerra tinha a ver com suas origens — um golpe de Estado que derrubou um ditador popular — e também em seu pouco interesse para atender reivindicações das grandes camadas da população.
A democracia que vivemos nasceu nas campanhas de rua contra a ditadura, que envolveram estudantes e trabalhadores, a classe média liberal e mesmo empresários. Sofrida, difícil, a eleição direta não foi uma dádiva, mas uma conquista e isso é reconhecido pela memória da população, que despreza os movimentos de nostalgia autoritária.
“NADA VIAM ALÉM DA REVOLUÇÃO.
Apesar de uma imensa votação popular, Getúlio foi emparedado por uma conspiração de políticos, empresários conservadores e aliados locais do governo norte-americano, inconformados com a criação da Petrobrás, na época em que, no Irã, a CIA promovia — às claras — um golpe de Estado para derrubar um primeiro-ministro nacionalista e restaurar a monarquia.
Getúlio foi combatido, também, por quem poderia ter-lhe dado apoio e sustentação, pois falava em nome de uma parcela importante dos trabalhadores e da população pobre do país, o PCB, uma das principais organizações populares de então.
Alinhado com uma perspectiva ultra-esquerdista de expandir a revolução a qualquer custo, típica dos anos inciais da Guerra Fria, o PCB considerava Getúlio mais do que um inimigo de classe: um aliado do imperialismo, recusando-se até a fazer campanha por sua eleição, em 1950. Pregou o voto branco. Graças a esse comportamento, que auxiliava a elite que tentava derrubar Getúlio de qualquer maneira, após o tiro no peito, em 1954, a multidão que saiu às ruas para defender suas conquistas e esperanças empastelou as redações dos jornais do partido.
Jango tomou posse em função de uma luta democrática que chegou às fronteiras de uma guerra civil — quando Leonel Brizola mostrou que a democracia nem sempre pode ser defendida de mãos vazias. Procurando enfrentar uma inflação de 25% anuais, Jango não conseguiu apoio para o Plano Trienal de Celso Furtado, projeto que implicava num pacto social que previa o controle de preços, que os empresários não apoiavam, e de salários, que os sindicatos combatiam.
O esvaziamento desse possível acordo de conciliação foi seguido pela nomeação de Carvalho Pinto, político com fortes ligações com o empresariado paulista e também com a esquerda católica. Um de seus principais assessores na época era Plínio de Arruda Sampaio, que ajudou a levar o PDC para a base de apoio de Goulart e, décadas depois, seria dirigente do PT e, após nova mudança, candidato a presidente pelo PSOL.
Após a queda de Carvalho Pinto ocorre uma nova mudança no governo Goulart, que abandona projetos de acordo político para uma ação de ruptura. “Vendo que seu governo acabaria sem realizar as reformas, o presidente aderiu a proposta de enfrentamento pregada pelas esquerdas,” avalia Jorge Ferreira, na espetacular biografia João Goulart. “Mesmo contrariado, fez tudo o as esquerdas quiseram. Todos os projetos de lei exigidos foram enviados ao Congresso Nacional.”
Mas a cena política mudava rapidamente, liberando forças que pareciam mais importantes do que se pensava. Jango fora ultrapassado — embora não fosse fácil distinguir o rumo dos acontecimentos. Ferreira avalia que, diante do motim dos marinheiros — liderados pelo sempre obscuro Cabo Ancelmo — “as esquerdas, embriagadas pela arrogância e autossuficiência, nada viam além da revolução.”
A BUSCA DE UM NOVO GOVERNO.
Dilma venceu as eleições mais apertadas ocorridas depois da democratização do país. Comprou e venceu o debate politico, o mais claro de nossas eleições recentes.
Mas Dilma foi derrotada em urnas de forte presença operária e tradição de voto no PT, como aconteceu no ABC paulista. Enfrentou uma campanha atroz por uma parte da elite de grandes empresários e da cúpula do aparelho de Estado, que terminou numa inaceitável tentativa de intervenção no resultado da eleição. Antes que seus eleitores fossem as ruas para celebrar a vitória, em várias cidades do país ocorreram manifestações de cunho fascista a favor de um golpe militar.
É nesse ambiente que Dilma tenta construir um novo pacto político, mais amplo do que o governo de 2010-2014. Convencida de que os problemas econômicos tem uma raiz política, quer ampliar a base do governo. Em sintonia com Lula, seus movimentos tem como objetivo aproximar-se dos mercados, que em vários momentos do primeiro mandato mostraram disposição de sabotar as medidas do governo.
É uma decisão que implica em alguma dose de risco para Dilma. Não se sabe até onde ela irá, para encontrar novos caminhos em relação ao modelo atual.
Pode-se apostar que, em breve, será pressionada a entregar plenos poderes a Joaquim Levy, afastando-se da área econômica. Qualquer senho franzido será motivo de crise midiática.
Esses movimentos fazem parte do jogo político. Mas temos o direito de duvidar que a presidente irá ceder.
Dilma também trouxe o empresário Armando Monteiro Neto, responsável pela campanha vitoriosa no Recife, e que foi duas vezes presidente da Confederação Nacional da Industria, CNI. Está comprando uma briga para nomear Katia Abreu, que foi presidente da Confederação Nacional da Agriculutura, é inimiga número 1 do MST e dos movimentos sociais ligados a terra — mas tem uma boa relação pessoal com a presidente e, numa eleição disputadíssima, ajudou na vitória em Tocantins. Num movimento para o outro lado, Dilma recebeu o teólogo Leonardo Boff e Frei Betto, a quem disse que fará dos movimentos sociais a prioridade de seu governo.
Cumprindo o que disse, terá mais facilidades para enfrentar turbulências que certamente virão.
O reconhecimento popular pela importância da vitória se manifesta na empolgação pela cerimonia de inauguração do segundo mandato. As notícias são de uma grande mobilização rumo a Praça dos 3 Poderes.

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