sábado, 31 de outubro de 2015

A subversiva esperança no Brasil - A esperança no Brasil é alvo de um cerco impiedoso. A revanche dos interesses derrotados, associada aos erros do governo, mantêm a sociedade prostrada.

Roberto Stuckert Filho/ PR


Por Saul Leblon



A esperança no Brasil é alvo de um cerco impiedoso que completa um ano nesta 2ª feira, desde que Dilma Rousseff foi reeleita, em 26 de outubro de 2014.
 
A revanche dos interesses derrotados, associada aos erros do governo na transição econômica em curso, mantém a sociedade em permanente prostração. 
 
Onde quer que a esperança no Brasil respire, ressoe ou murmure, golpes de tacape cuidam de esmaga-la, salgando o campo pisado ao seu redor.
 
Ato contínuo, o exército das carpideiras midiáticas se encarrega de martelar e esganiçar as razões pelas quais é imperativo manter o descrédito em uma nação de 200 milhões de habitantes; autossuficiente em água, energia e alimentos; detentora de uma base industrial completa e resgatável; marmorizada de forças políticas que que há 12 anos afrontam o conservadorismo na luta pela construção de uma democracia social tardia, em pleno coração da América Latina.
 
Diuturna, a narrativa de um Brasil aos cacos dói mais que pancada.
 
‘O ano que vem será pior. O outro decepcionante. Não espere muito de 2018...’
 
O senador José Serra fala em um arrocho de década e meia.
 
Para reduzir a dívida bruta, o tucano advoga a renúncia à autonomia governamental na condução do investimento público e privado. Pelos próximos 15 anos, estima singelo. Em um horizonte internacional marcado pela mais adverso e volátil cenário capitalista desde 1929.
 
Um colosso estratégico.
 
A rudimentar concepção de responsabilidade fiscal do delfim das elites paulistas, na verdade um temerário burocrata do engessamento do Estado, tem sua consequência histórica flagrada pelo economista Fernando Ferrari (leia a entrevista nesta pág.): ‘Se prevalecesse o projeto de Serra em 2008, o mundo não teria tido uma recessão, mas uma depressão’, fuzila o professor da UFRGS.
 
Esse, o calibre das propostas conservadoras oferecidas a uma sociedade em transe.
 
Servido no café da manhã, até o boa noite do último telejornal, o napalm escava a carne, já furou ossos, aproxima-se da alma. 
 
Não cessa de queimar.
 
Idosos contemplam o futuro dos netos e bisnetos em silëncio, após a escalada do JN. 
 
O horizonte largo que o pre-sal descortinou é derretido nos altos-fornos das goelas da desolação.
 
A corrupção inaceitável alimenta savonarolas incandescentes. Mas é sobretudo o soterramento deliberado da autoconfiança na capacidade brasileira que liquefaz o sentimento de autoestima.
 
Se uma recaída se instala, a prontidão aciona a descarga tóxica para devolver o doente ao estado terminal.
 
O espetáculo midiático tem meta e método.
 
Não se visa o arcabouço causal incrustrado no financiamento do sistema político, por exemplo.
 
Esqueça; relações de causa e efeito foram banidas o jornalismo isento.
 
O que importa é sedimentar o calendário subliminar: ‘...tudo começou em 2003’.
 
Só terminará quando ‘tudo o que começou em 2003 for erradicado’.
 
A legitimidade atribuída ao caricato operador do dinheiro grosso e dos interesses finos resume o alvo da faxina.
 
Trata-se de entorpecer o discernimento coletivo sobre o essencial.
 
O essencial cabe em uma interrogação.
 
 
Quem vai reordenar o país dos próximos 15 anos-- os mercados ou a esperança mobilizada em nós mesmos?
 
A lógica autônoma da ganância rentista, como quer o ‘desenvolvimentista’ Serra?  Ou as escolhas do discernimento democrático, inteiradas das possibilidades e limites da nação?
 
A repactuação do desenvolvimento em meio ao esgotamento de ciclo histórico, encontra-se entre as provas cruciais na vida de um povo.
 
A corrosão da autoestima é a arma letal dos conquistadores.
 
E o redil ardiloso dos interesses que rejeitam a infiltração da soberania popular no Estado, para reafirmar a rigidez econômica e institucional prevalecente.
 
Na captura do imaginário de uma nação há palavras que devem ser banidas.
 
Intelectuais reunidos há dias no lendário marco da resistência à ditadura, o prédio da antiga faculdade de filosofia da USP, na rua Maria Antonia, em São Paulo, resgataram a mais subversiva delas.  
 
‘Não se trata (apenas) de barrar um processo de impeachment’, advertiram em um manifesto, ‘mas de reinventar a esperança.'
 
Não qualquer esperança, a política, indissociável da credibilidade histórica.
 
E da ética  --calçadas ambas na coerência pregressa, ou na autocrítica que recapacita para o futuro. 
 
O PT tem um encontro inadiável com esse tira-teima, cuja protelação é um dos fatores agravantes da crise brasileira.
 
A subestimação da luta ideológica pela esquerda, ao dar um tratamento convencional à crise, reforça os interditos da narrativa conservadora.
 
Um e outro agravam o entorpecimento popular ao ocultar determinações que mascaram os verdadeiros obstáculos a serem superados e, sobretudo, ao desobrigar a sociedade do esforço requerido diante de um desafio extraordinário.
 
Na síntese iluminadora de István Mészáros, o extraordinário é a atual etapa de uma acumulação do capital que ‘não consegue  mais funcionar adequadamente no âmbito da economia produtiva’.
 
O cassino financeiro global é o  locus sistêmico da engrenagem estéril.
 
Não é uma tertúlia marxista.
 
Estamos falando da lógica que não saciará enquanto não abater, eviscerar e desossar o espaço do desenvolvimento e da soberania democrática no século XXI.
 
As implicações para a rotina das nações são avassaladoras. 
 
Elas condicionam as escolhas que o Brasil terá que fazer, comprometem o destino dos nossos filhos,  a sorte dos filhos e netos que um dia eles terão.
 
Tratados econômicos (a exemplo do transpacífico e transatlântico) munidos de tribunais internacionais de exceção contra a soberania jurídica e legislativa das nações, constituem a face mais nova desse assalto.
 
A exacerbação evidencia a doença autoimune do capital que sabota, espreme e estreita o alicerce social do emprego e do trabalho, do qual depende, paradoxalmente, a sua valorização.
 
Compreende-se assim a espiral de crises sistêmicas, sendo a de 2008 a quinta delas desde 1980 e a mais abrangente e profunda, de convalescença mais longa e incerta, desde 1929.
 
Estamos no aclive de um desmanche histórico.
 
Sobra capital especulativo de um lado; a sociedade carece de investimento produtivo de outro.
 
A retração da atividade compromete adicionalmente a margem de ação fiscal dos governos.
 
A anemia do investimento público e da demanda afugenta o capital produtivo.
 
Parece uma descrição do Brasil. 
 
E não é só coincidência.
 
Os erros cometidos pelo governo --.juros siderais, a prorrogação dos incentivos contracílicos etc —não devem obscurecer o peso das determinações mais gerais que o discurso conservador oculta, e cuja desconsideração aleija a ação política e econômica. 
 
Grandes empresas mundiais estão sentadas em trilhões de dólares de liquidez apartados da produção. 
 
O paradoxo do capital celibatário é a anemia da demanda efetiva, numa época em que a riqueza financeira queima nas mãos do mercado.
 
O Wall Street Journal (19/10/2015) informa que os bancos dos EUA adotaram uma nova precaução para sua saúde diante do alongamento da crise: evitar os grandes depósitos de megaempresas.
 
O  J.P. Morgan Chase  & Co., maior banco do país em ativos, segundo o Wall Street, reduziu essas operações  em mais de US$ 150 bilhões este ano.
 
O motivo é o mesmo que faz companhias recomprarem as próprias ações inflando bônus e dividendos: as oportunidades de aplicação lucrativa definham. 
 
Depósitos domésticos nos bancos americanos, diz o Federal Deposit Insurance Corp, atingiram US$ 10,59 trilhões no segundo trimestre.  
 
Um salto de 38% em relação a 2010.
 
Os empréstimos, em contrapartida, despencaram do equivalente a 92% dos depósitos, em 2007, para 78% deles em 2010.
 
Hoje estão em 71% .
 
Taxas reais baixíssimas, ou negativas, trancam as opções especulativas em quase todo o planeta.
 
Para arrematar, mesmo tímidas, regras regulatórias passaram a onerar  operações especulativas depois de 2008.
 
Reservas de até 40% sobre depósitos corporativos são exigidas das instituições bancárias nos EUA. A contrapartida salta para 100%  no caso de depósitos de fundos assanhados na arte da alavancagem.
 
O vapor na caldeira rentista sopra, bufa e urra.
 
‘Abram essa porta!’, vociferam rentistas de todas as latitudes em espasmos de abstêmio.  
 
O conjunto explica a pressão sobre a presidente do BC norte-americano, a parcimoniosa Janet Yellen, que segura a tranca de referência do planeta.
 
Uma precipitação sua poderá desencadear a recidiva em forma de depressão, num momento em que o investimento fixo (bens de produção) nos países ricos  está 17% abaixo do patamar de 2008; 200 milhões de pessoas continuam desempregadas  e a diferença de renda entre os 10% mais ricos e os 10% mis pobres é de quase dez vezes   --contra sete há uma geração. 
 
Resumindo: a desordem financeira mundial não cederá tão cedo, nem tão facilmente.
 
A gravidade das mutações em curso desaconselha ilusões em panaceias de ajustes perfeitos, como evocam Levy, Serra, FMI etc.
 
A ideia de que um bom arrocho  –aqui e alhures— devolverá o capitalismo ao mundo pré-2008 enseja, ademais, uma protelação corrosiva em relação às questões determinantes em jogo.
 
Sem freios e contrapesos de repactuação política, que viabilizem a ação coordenadora do Estado, será impossível, hoje mais que nunca, atender requisitos e prioridades do desenvolvimento de uma nação.
 
O resgate da credibilidade política requer que se conscientize a sociedade brasileira da encruzilhada que a envolve, mas que não se encerra nem se resolve nela mesma.
 
Panaceias conservadoras, do tipo ‘cortar na carne’, ou a ilusão à esquerda na autossuficiência  da taxação dos ricos, transpiram notória limitação diante do chão mole que circunda a construção da democracia social em nosso tempo.
 
Cortando o que for possível, taxando o que for capaz, ainda assim a sociedade defrontar-se-á com dilemas superlativos diante de urgências sobrepostas que enfrentam interditos inéditos.
 
Entre eles o fato de que em regime de livre mobilidade de captais todo capital é capital estrangeiro e na crise se move contra a nação.
 
O desassombro para negociar uma travessia crível implica a honestidade de compartilhar flancos e riscos, dividir ônus, definir salvaguardas –como a garantia do emprego, o poder de compra das famílias assalariadas, os serviços públicos e os programas sociais; mas também alongar o calendário das conquistas e dos sacrifícios.
 
Ampliar a margem de manobra das políticas de desenvolvimento inclui, ademais, um esforço hercúleo para romper a unidade entre a classe média e o capital.
 
Interesses não antagônicos à expansão do investimento, da justiça social e do gigantesco mercado de massa brasileiro devem ser cooptados.
 
Qualquer coisa menos que isso jogará a nação num moedor interminável  de crises e ajustes, que os números atuais do desemprego, da receita, dos juros, do investimento público e privado prefiguram.
 
O PT subestimou as evidências da mutação sistêmica que ora se reafirmam com a força de uma avalanche capaz de soterra-lo.
 
A crise de 2008 era um traço metabólico, não um soluço passageiro do capitalismo.
 
A travessia para um novo ciclo de desenvolvimento ficou mais longa, estrategicamente mais conflitante, quiçá impossível sem a força e o consentimento de uma ampla frente de forças democráticas que se interponha, claramente, como referência crível de esperança entre a regressão que nos assalta e a prostração que nos inoculam os derrotados de 26 de outubro de 2014.

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