domingo, 25 de outubro de 2015

Reflexões sobre o capitalismo em crise (IV). O contra-ataque chinês.



Sergio Barroso *


O crédito é o julgamento que a Economia Política realiza sobre a moralidade de um homem. (...)[ele] calcula o valor monetário não em dinheiro, mas em carne e coração humanos” (Marx, “Cadernos de Paris, 1844). [1]



Nas novas estimativas do relatório do FMI (Fundo Monetário Internacional, 09/2015), lê-se que “aumentaram” os riscos de uma recaída numa recessão econômica global, o que vem acompanhado de informações tão graves quanto. Se o crescimento mundial foi reduzido para 3,1% (o mais baixo índice desde 2009), a inflação na zona do euro – em constatada deflação - não vai passar de 0,2% este ano; tendo os EUA involuídos para uma provável taxa de 0,1%! 
Ainda assim e com todo alarde sobre o rebatimento da crise sobre os países “emergentes”, nas projeções da OMC (Organização Mundial do Comércio) o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) dos países em desenvolvimento será este ano de 3,9%, e de apenas 1,9% para os capitalistas desenvolvidos. [2]

Nova recessão no horizonte

Na análise sempre distorcida e “otimista” da institucionalidade da grande finança internacional, a chefona do Fundo Cristine Lagarde defende que: a) os países centrais deveriam hoje responder “politicamente” a um “cenário cada vez mais sombrio”, e isso está se “tornando uma grande dor de cabeça” - “É preciso agir agora”, disse às vésperas da reunião de setembro do FMI; b) sua preocupação principal é em se verificar que uma “combinação de fatores negativos aconteça... ao mesmo tempo”; c) também por isso pediu ao Fed (banco central americano) para deixar para 2016 o aumento na taxa básica de juros - quase zero desde dezembro de 2008 -, e exortou os líderes da zona do euro a resolver “a montanha de empréstimos inadimplentes que pesa sobre o crescimento” econômico regional.[3]. 

Entretanto, como passou a se difundir no mundo inteiro, e praticamente como uma só voz, a República Popular da China já está sendo acusada de ser a responsável pela próxima recessão!

“Economia em coma” - e a manobra chinesa

Para o cientista político americano (republicano) Brandon Smith, na medida em que a situação da economia mundial foi precipitada pelo crash bolsista de agosto deste ano, “a hipocrisia desta mentira [sobre a China] é verdadeiramente espantosa”, quando a mesma mídia - “sacos de lixo”, chama-a Smith – faz pouquíssimo tempo vivia a repetir que a instabilidade financeira chinesa teria “pouco ou nenhuma consequência” sobre os mercados financeiros globais. E as ações – interpreta - não entram em crash antes ou durante o desenvolvimento de uma economia enferma: elas entram em crash depois da economia “já ter entrado em coma”. [4] No caso, o Fed – ou qualquer banco central ou qualquer governo que assim agiu - utilizou estímulos para manipulação dos mercados através de profusões da moeda reserva aliadas a taxa de juro zero alimentando a recompras de ações monetizar (transformar títulos em dinheiro) a própria dívida do governo americano, conclui ele.

A nova onda de manipulação midiática pelos imperialistas americanos contra a China, que prosseguirá, foi de pronto desmoralizada pelo economista holandês Antoine van Agtmael – criador do termo “mercados emergentes” -, ao enxergar a instabilidade nas bolsas de valores chinesas (agosto) como um processo de correção, para ele “saudável”, e não como o sinal de uma crise mais grave. Com absoluta clareza, diz ter a China atravessado de um crescimento do PIB de 10% a 12% para um de 6% a 7%.  E esse “ajuste”, necessário, nos deve ainda lembrar que a China é a única grande economia que não passou por uma crise financeira: Brasil, EUA, Coreia do Sul, Taiwan, México e Rússia... “Todos os maiores países enfrentaram uma crise financeira, mas a China não”, assinala. Na mesma direção analisa o pesquisador do Instituto China Lau do King's College (Londres) Ramon Pacheco. Afirmando haver maior liberalização do sistema financeiro chinês, vê nas alterações últimas na política monetária (câmbio e juros) uma mensagem clara do governo com suas ações indicando “que ele está confortável com o crescimento menor e um modelo menos intervencionista”. [5]

Assim, o foco do governo chinês no curto prazo estaria em manter o crescimento econômico “num nível razoável e controlar os riscos” de liberalização excessiva, reconhece o Wall Street Journal (Valor Econômico, 21/08/2015); enquanto o arrogante ideólogo liberal Martin Wolf passou admitir que “a economia mundial também fica resfriada quando a China espirra” (Valor Econômico, 14/10/2015).

A sólida “muralha econômica” da China

De outra parte, conforme recente estudo do economista laureado russo Ivan Tselichtchev, [6] Xangai já, faz tempo, é o maior centro industrial do mundo. Uma enorme batalha pelo mercado chinês estaria apenas começando e o Ocidente (EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Itália) deve agir rápido para não ficar de fora dessa guerra. A crise atual (“2008-2009”) demonstrou o “fracasso” do modelo capitalista anglo-saxão; e os efeitos colaterais dessa crise “ainda assustarão o mundo ocidental por muito tempo”. 

Factual: enquanto a crise sistêmica do capitalismo de 2007-8 não consegue apagar suas chamas, a China não é somente uma “fábrica mundial”, mas se transformou num gigantesco laboratório de pesquisas, inclusive em energia “verde”, setor em que já lidera. Em relação às perspectivas da competição no desenvolvimento com o assim denominado Ocidente – argumenta o economista russo -, a China: a) continua a manter a sua moeda desvalorizada; b) as empresas chinesas contam com forte apoio do Estado e investimentos de fundos do governo nessas companhias; c) já é bastante extensa a lista de aquisições chinesas de empresas ocidentais, enquanto o controle acionário de importantes empresas chinesas por companhias ocidentais vem se revelando “efetivamente impossível”; d) o acesso de empresas e investidores ocidentais a segmentos do mercado chinês ou a negócios no país associam-se à transferência de tecnologia; e) políticas e o direito chineses continuam a facilitar o acesso ao “roubo” de tecnologias ocidentais.

Marx, o crédito fantasma e o capitalismo zumbi 

Como nos referimos (parte I), a configuração efetiva de um sistema financeiro sombra (shadow banking system) emergente durante a expansão da “globalização financeira” (anos 1980 em diante) confluiu também para um avançado processo de apodrecimento do sistema financeiro global, marcado por manipulação de negócios ilegais, deliberados, em altas esferas do circuito bancário/financeiro. O endividamento inédito e em incontrolável escala, aliado às fraudes sistemáticas da “engenharia financeira” levaram a um processo de decomposição do sistema de crédito internacional. 

Nesta matéria (“shadow banking system”), de modo nenhum se pode tirar os méritos do liberal Paul Krugman. Vinculado “desde criancinha” ao partido Democrata americano, esse economista (Nobel, 2008) foi dos primeiros a denunciar as vigarices do sistema bancário sombra, escrevendo que tal sistema (de empresas “não bancos” ou bancos sem supervisão do banco central americano e outros) se agigantou durante a fase expansiva da economia “financeirizada”. Desse modo –diz -, pouco antes da crise os cinco grandes bancos de investimento dos EUA chegaram a somar balanços patrimoniais da ordem de US$ 4 trilhões, enquanto os ativos totais do sistema bancário do país em torno de US$ 10 trilhões! Enfim, em “A crise de 2008 e a economia da depressão” (Elsevier/Campus 2008), Krugman acusa ali os “instrumentos financeiros exóticos” (derivativos, instrumentos altamente especulativos etc.) do sistema bancário sombra: “instituições que nunca foram regulamentadas”.

Num exemplo concreto do contubérnio financeiro fraudulento e criminoso: em 17 de Julho de 2012, tornou-se público e comprovado que David Bagley, diretor mundial do banco HSBC para regulamentação pediu demissão em sessão no Senado dos EUA, convocada para ser acusado, após investigação, de permitir operações de lavagem de dinheiro do narcotráfico (cartéis do México), bem como de dinheiro proveniente de financiadores de “grupos terroristas” (Arábia Saudita). A alta direção do banco sabia de tudo! 
 (ver:

A referenciada consultoria Mackinsey publicou um relatório (Debt and, not much, deleveraging, McKinsey Global Institute – MGI) [7] mostrando que o endividamento (famílias, governos, empresas e setor financeiro) saltou de US$ 87 trilhões de 2000 para US$ 142 trilhões em 2007; alcançou US$ 199 trilhões no segundo trimestre de 2014. A dívida total como proporção do PIB registrara-se assim: 246% (2000), 269% (2007), atingindo 286% em 2014. [ver gráfico abaixo]

Há hoje, então, uma “bolha de crédito” de mais de US$ 200 trilhões a financiar a economia capitalista global ou mais de três vezes o PIB nominal do planeta! Está nesse aludido sistema financeiro o grosso desta dívida que precisa ser realimentada na própria “financeirização” da economia mundial, ampliando mais e mais a concentração de riqueza e as desigualdades. Como aponta acertadamente Luiz Eustáquio Diniz, o processo de globalização financeira “tem potencializado a dívida mundial e a maioria dos países estão perdendo o controle sobre as dívidas nacionais”. [8]

Claro: montanhas de dívidas, papéis podres para os trabalhadores pagarem! Vão Pagar?

Ruínas ideológicas

Repletas de lucidez, portanto, as recordações que faz o economista Luiz Afonso Silva [9] das caracterizações de Frederic Jameson, David Harvey e Jean Braudillard acerca das conexões entre a cultura e a economia da finança transmutadas na época da globalização neoliberal. Tempo, imediatismo e valores em ruínas no capitalismo contemporâneo sancionam sem cessar a homogeinização cultural da idiotia; uma esquizofrenia do tempo contínuo; uma espécie de sociedade pornográfica imagética, mas sempre a um passo além do real.

NOTAS
[1] Ver: “Cadernos de Paris & Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844”, K. Marx, em: Economia Política e dinheiro, Expressão Popular, 2015, p.206.

-progresses ; traduzido em resistir.info
[5] Ver: “China vive correção, e não crise, diz Agtmael”, Valor Econômico, 01/09/2015; “Governo chinês está à vontade com crescimento menor, afirma especialista”, O Globo, 25/08/2015.
[6] Ver: “China versus ocidente: o deslocamento do poder global no século XXI”, DSV, Introdução, Caps. 1, 2 e 3, 2105.



[9] Ver: “Moeda e crise econômica global”, L.A.S. da Silva, Unesp, 2015, p.p 56-62.

* Médico, doutorando em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), membro do Comitê Central do PCdoB

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