sábado, 16 de abril de 2016

Quais os objetivos econômicos do golpe? - O conjunto de forças sociais que apoia o golpe parece bem menos comprometido com o desenvolvimento industrial autônomo.

Valter Campanato / Agência Brasil



Pedro Paulo Zahluth Bastos (Professor Livre-Docente do Instituto de Economia da UNICAMP)


Vivemos a confluência entre três grandes crises. A primeira é a crise de legitimidade do sistema político detonada pelas revelações públicas sobre a relação corrupta entre políticos e empresários, pela prisão de grandes empresários e pela ameaça ao mandato de pelo menos metade dos representantes no Congresso Nacional. 

As outras são a crise econômica e a crise do projeto político comandado pelo Partido dos Trabalhadores nas últimas quatro administrações federais. O processo de impeachment de Dilma Rousseff é a primeira batalha pela definição dos rumos de saída da crise. 

Politicamente, o grupo PMDB-PSDB tem objetivos claros. Primeiro, interromper a Operação Lava Jato depois que ela apresente seu bode expiatório: Lula alijado, pela prisão ou pela ficha-suja, da competição política no Brasil, levando com ele, se possível, o registro do PT. 

Segundo, uma reforma política que restaure o financiamento privado de campanhas eleitorais e reforce o poder dos grandes partidos sobre os menores e sobre a definição da agenda legislativa. 

Isso permitiria superar a crise política da maneira ideal para o grupo PMDB-PSDB: enterrando o projeto político do PT, salvando a maioria dos políticos ameaçados pela Lava Jato e concentrando o poder necessário para encaminhar a superação da crise econômica. 

De quebra, esse grupo teria o pretexto para reprimir e criminalizar os movimentos sociais, um objetivo acalentado há muito tempo, mas impossível enquanto Lula estivesse no meio do jogo. O pretexto seria a “convulsão da ordem social” identificada à resistência da base social derrotada pelo golpe diante da tentativa de abafar investigações e mudar a Constituição Federal. Se bem-sucedida, tal repressão dificultaria a capacidade de reação das esquerdas nas eleições de 2018. 

Há elementos de incerteza nesse projeto. O primeiro é o tamanho da reação popular e o resultado das eleições de 2018, sobretudo se Lula continuar no páreo. Outra variável incerta é a reação do Supremo Tribunal Federal (STF) diante do desejo de interrupção da Operação Lava Jato, com provável intervenção sobre a Polícia Federal. 

No entanto, a instabilidade inerente a um conflito entre Executivo e Judiciário poderia ser mitigada se o próprio furor investigativo da Lava Jato abrandar com o impeachment de Dilma e a malhação do bode expiatório Lula da Silva. É coincidência que, às vésperas da votação do impeachment, o juiz Sergio Moro declare sonhar concluir a operação ainda em 2016, depois de se recusar a investigar a lista de mais de 200 possíveis doações ilegais da Odebrecht e de rejeitar a oferta de delação premiada de Marcelo Odebrecht?

Outra hipótese de “solução” do conflito entre Executivo e o STF, que passaria a conduzir a Operação Lava Jato, seria modificar a própria composição do STF. Alinhados Executivo e Legislativo com a aliança PMDB-PSDB em um eventual governo Temer, por que não aumentar o número de ministros do STF, de modo que representem melhor a “vontade popular”? 

O programa econômico do golpe 

Sobre o que parecer haver poucas incertezas é sobre o programa econômico do golpe. Ele foi apresentado ainda em novembro de 2015 na forma do documento Ponte para o Futuro do PMDB

Há no Brasil uma grande disputa sobre quem vai “pagar o pato” do ajuste fiscal. Dilma Rousseff fez uma campanha presidencial em que apelou para a base tradicional de trabalhadores organizados e a baixa classe média, acusando a oposição de buscar “cortar, cortar e cortar”. No governo, fez o contrário do que propôs, sujeitando-se a uma grande perda de popularidade que a tornou fortemente vulnerável ao ataque previsível dos derrotados de 2014. 

O problema é que, apesar de acusarem Dilma de estelionato eleitoral, os derrotados se alinharam com o PMDB para propor um programa muito mais radical do que aquele apresentado em 2014. A ideia é levar a austeridade em direção a cortes profundos da Constituição Federal. 

O programa Ponte para o Futuro é radicalmente neoliberal, com a promessa de radicalizar o ajuste fiscal contra o gasto social e com privatizações, jogando o custo do ajuste na população trabalhadora, especialmente a que depende de serviços públicos. Ao mesmo tempo, pretende poupar os empresários e atrair o capital externo com privatizações, normatização liberal e rebaixamento de salários diretos e indiretos. 

Temer foi claro na mensagem que deixou vazar no dia 11 de abril. Ao mesmo tempo em que afirmou que “sem sacrifícios, não conseguiremos avançar”, prometeu “incentivar enormemente as parcerias público-privadas à medida... que hoje, mais do que nunca, o Estado não pode tudo fazer... fiz muitas viagens internacionais no primeiro mandato e verifiquei o quanto os outros países, que têm muito dinheiro em suas mãos, querem fazer aplicando no Brasil”. 

A Ponte para o Futuro tem passagens semelhantes: “a solução (fiscal) será muito dura para o conjunto da população”, mas seria necessário “evitar aumento de impostos” e fazer “desoneração de exportações e investimentos”. A conta é para os de baixo. Além do aumento da idade mínima da aposentadoria, “acabar com as vinculações constitucionais...como no caso dos gastos com saúde e com educação”. Na prática, abrir ainda mais espaço para a privatização da saúde e da educação, com reversão da universalização do Sistema Único de Saúde e do Plano Nacional de Educação. Cobrança por consultas médicas e de matrículas no ensino superior já foram sugeridas por ideólogos neoliberais. 

O controle orçamentário seria o atalho para o semiparlamentarismo anunciado por Temer em novembro de 2015: a execução impositiva das emendas orçamentárias dos deputados e, ao mesmo tempo, “a criação de uma... Autoridade Orçamentária, com competência para avaliar os programas públicos... e sugerir a continuação ou o fim do programa, de acordo com os seus custos e benefícios”. 

A tarefa dessa Autoridade seria “iniciar o processo de sua redução como porcentagem do PIB. O instrumento normal para isso é a obtenção de um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o crescimento do próprio PIB.... Qualquer voluntarismo na questão dos juros é o caminho certo para o desastre.” O novo PMDB não poderia ser mais explícito quanto a quem quer agradar. Chega de determinações constitucionais: todo e qualquer programa pode ser “revisado” anualmente se necessário para compensar o custo fiscal absurdo dos juros elevados sobre a dívida pública. 

No mesmo sentido, privatizações visariam “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias”. Quanto aos direitos trabalhistas, caberia “permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais”. Para o bom entendedor, seria o fim da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943. 

Tudo isso está em linha com os projetos legislativos patrocinados por Eduardo Cunha: terceirização sem limite; jornada flexível de trabalho; exploração do pré-sal seja feita sob o regime de concessão; independência do Banco Central; limite draconiano para a dívida pública; retirada do direito de greve dos servidores etc. 

A inserção global subalterna

Mais além da mudança da Constituição, da CLT e de leis sociais e nacionalistas, o neoliberalismo seria blindado com “o maior número possível de alianças ou parcerias regionais, que incluam, além da redução de tarifas, a convergência de normas, na forma das parcerias que estão sendo negociadas na Ásia e no Atlântico Norte”. Tais normas tendem a nivelar por baixo a competição internacional, em prejuízo de impostos, salários, regras trabalhistas, sociais e ambientais que as corporações multinacionais poderiam questionar, em comitês de arbitragem extraterritorial, sempre que aleguem provocar danos por lucros cessantes. O Estado estaria manietado para realizar políticas sociais e de desenvolvimento soberano. 

O objetivo, em suma, é usar o pretexto da crise fiscal para reverter as conquistas sociais da Constituição Federal e da CLT, facilitando a “integração” das empresas à competição global. Com isso, quer-se assegurar uma economia de baixos impostos e salários (diretos e indiretos) para atrair capitais para projetos de exportação, privatizações e parcerias público-privadas altamente lucrativas. Isso reverteria a criação de um mercado interno de massas e orientaria o modelo de desenvolvimento para o mercado externo.

Parece imaginar-se que a realização de tratados comerciais transcontinentais atrairia grandes corporações, que supostamente trariam uma parcela de suas cadeias da produção global para o Brasil. Não foi isso que ocorreu na década de 1990, na última ocasião em um projeto neoliberal radical foi tentado: a despeito da mão de obra barata da maioria da população, o Brasil não conseguiu concorrer com China e México, e hoje teria que disputar com Vietnã e Bangladesh também. Como sempre ocorre em propostas neoliberais em países periféricos, assegura-se apenas a inclusão de uma parcela minoritária da população no mercado global, e gera-se enorme instabilidade econômica, política e social.

Uma conjuntura crítica para o destino do país

Em 1964, as esquerdas consideraram que a ditadura militar implementaria um programa de regressão econômica e social que isolaria o novo regime e aceleraria sua derrocada. Tal programa envolveria o retorno a um modelo agrário-exportador, na previsão errônea de vários intelectuais, inclusive Celso Furtado. Na verdade, a presença de militares e empresários política e socialmente conservadores, mas interessados no desenvolvimento industrial do chamado Brasil Potência, neutralizou os representantes do projeto econômico liberal e assegurou grande crescimento econômico que conferiu popularidade à ditadura por longo tempo. 

Hoje, ao contrário, o conjunto de forças sociais que apoia o golpe parece bem menos comprometido com o desenvolvimento industrial autônomo. A força dos empresários interessados na associação subordinada com as grandes corporações multinacionais é patente, “mercado financeiro” à frente. A grande mídia está alinhada com a difusão do programa neoliberal repetido em todas as frequências por economistas neoclássicos, com grande capacidade de coordenação via Instituto Millenium. E a camada burocrática que se rebela contra o governo eleito não é mais constituída por militares desenvolvimentistas. Ao contrário, juízes, procuradores e policiais federais parecem mirar especialmente contra empresas estatais e os últimos empresários nacionais capazes de competir internacionalmente, a partir dos conglomerados da construção civil. Talvez considerem que as petroleiras americanas e as empreiteiras chinesas sejam menos corruptas, e preferem jogar o bebê junto com a água suja. 

Se vencer, o novo bloco PMDB-PSDB vai apresentar iniciativas “amargas” como condição para resolver o estrago deixado pelo governo derrotado, mas jogar todo seu peso para assegurar a retomada do crescimento, mesmo que temporariamente, antes das eleições de 2018. Como isso não é garantido, a sustentação de seu projeto depende da repressão dos movimentos sociais, da mudança das regras eleitorais e do próprio regime político. É por isso que a primeira e as próximas batalhas contra o impeachment-golpe se revestem de importância crucial para definir o futuro do país pelo tempo de vida da próxima geração. 

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