segunda-feira, 25 de julho de 2016

D. Paulo Evaristo Arns, o cardeal da democracia - Em julho se comemora os 50 anos da ordenação de D. Paulo como bispo. Sua carreira é uma cordilheira de cumes altos na luta contra a ditadura e pelos direitos humanos.

d. Paulo Evaristo faz duro discurso durante culto ecumênico na Sé por ocasião do assassinato do jornalista Vladimir Herzog
d. Paulo Evaristo faz duro discurso durante culto ecumênico na Sé por ocasião do assassinato do jornalista Vladimir Herzog



"Não matarás. Quem matar, se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus!" - estas palavras fortes foram pronunciadas na catedral da Sé, em São Paulo, em 31 de outubro de 1975, durante o culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog.
 
Seu autor, o cardeal D. Paulo Evaristo Arns, é usualmente um homem doce, afável e calmo mas, naquele momento, sua indignação estava no auge. Contra a ditadura militar, contra a repressão que torturava e matava, contra o desrespeito a todos os direitos humanos representado pela ação bárbara da ditadura e seus agentes.


Era a voz veemente e profética de um homem que, investido da autoridade de príncipe da Igreja, nunca abriu mão da humildade que o faz igual a todos os homens, embora elevado à dignidade cardinalícia pela hierarquia católica.
 
Este ano se comemora os 50 anos de sua ordenação como bispo. Em 2 de maio de 1966 ele foi eleito bispo auxiliar de São Paulo e, em 3 de julho daquele ano recebeu a ordenação episcopal.
 
D. Paulo nasceu em 14 de setembro de 1921, em Forquilhinha (SC), sendo um dos treze filhos de uma família de origem alemã. Ordenado bispo em julho de 1966, ele tornou-se depois o quinto arcepispo de São Paulo e o terceiro prelado dessa arquidiocese a receber o título de cardeal (em 5 de março de 1973).
 
Em Forquilhinha, ainda criança, a posição (beque) em que jogava futebol com seus irmãos já era uma indicação da atividade que o marcaria nas décadas futuras: a defesa. Do povo, dos trabalhadores, da democracia, dos direitos humanos.
 
Não importam os títulos – o que conta é a ação! Este é a definição essencial que o orienta. 
 
Numa ocasião, em 1979, fiz, juntamente com o colega Roldão Arruda, uma entrevista com D. Paulo para o jornal Movimento. Com cuidado, perguntei a ele sobre a existência de Deus. Recebi a resposta de um homem sábio: sei do que você está falando! Você não acredita, mas para Deus isso não tem importância; o que conta é a ação e vocês estão na luta ao lado do povo. Para Deus, é o que vale!
 
Fiquei surpreso; afinal , era o cardeal! A mais alta autoridade da Igreja em minha cidade! Com o tempo compreendi a valorização da ação que estava implícita naquelas palavras.
 
E a ação sempre foi, para ele, a luta ao lado do povo, dos mais humildes, contra a opressão e a injustiça. Caminho que seguiu sempre e reforçou desde sua ordenação sacerdotal, em 1945.
 
É um trabalhador incansável. Sacerdote, professor, escritor e editor. Deu aulas, com destaque para a PUC de Petrópolis. E também nas faculdades de Filosofia, Ciências e Letras em Agudos e em Bauru, no interior de São Paulo.


Como bispo auxiliar, atuou na zona Norte da capital paulista; uma de suas funções era visitar os presídios - sobretudo os cárceres políticos – e destacou-se pela luta sistemática, na qual usou o poder e o prestígio da Igreja, contra as torturas e as violações dos direitos humanos.
 
Em São Paulo, foi um animador das comunidades elesiais de base, o grande guarda chuva sob o qual a oposição popular contra a ditadura se reuniu, sobretudo na periferia, até o final do regime discricionário. Este movimento culminou, em 1978, no grande Movimento do Custo de Vida (depois conhecido como Movimento Contra a Carestia). 
 
D. Paulo ficou conhecido, entre os lutadores pela democracia, como o “cardeal dos direitos humanos” - em 1972 foi o fundador e dirigente da Comissão Justiça e Paz da arquidiocese de São Paulo. Antes, em 1970, fora criada a Pastoral Operária de São Paulo.
 
Em 31 de março de 1973 ele celebrou, na catedral da Sé, a missa em memória de Alexandre Vannucchi Leme, o líder estudantil que cursava Geologia na USP e militava na  Ação Libertadora Nacional (ALN). E foi assassinado sob tortura pela repressão política da ditadura. Foi um grande ato de resistência com mais de cinco mil participantes.
 
Colocando sua autoridade eclesial a serviço do povo, contra a ditadura, d. Paulo encontrou-se incontáveis vezes com autoridades do regime do arbítrio, desde comandantes militares até, no topo do regime, o general Golbery do Couto e Silva, a quem levava denúncias e exigências de esclarecimento sobre prisões e desaparecimentos políticos.

 
Foi perseguido por essa luta. Em outubro de 1973, indignado com a tortura, realizou uma Semana dos Direitos Humanos em São Paulo. Imprimiu 150 mil cópias da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, da qual o Brasil é signatário, para debate nas paróquias e comunidades eclesiais de base.
 
A resposta da ditadura foi rápida - mandou fechar a rádio 9 de Julho, da Cúria Metropolitana de São Paulo, para calar sua voz.
 
Em 1975 o conflito entre os generais da ditadura - os partidários do general Ernesto Geisel, contra a chamada “linha dura”, de extrema-direita - se acentuou. A partir de junho aumentaram as prisões, que voltaram a ser sistemáticas e frequentes.
 
O clima repressivo piorou em outubro de 1975. Foi nesse quadro que foi preso no Doi-Codi de São Paulo, com outros colegas, o jornalista Vladimir Herzog. Desde o primeiro momento d. Paulo se envolveu na defesa daqueles presos, e procurou as autoridades da ditadura - entre eles o governador paulista Paulo Egydio Martins. Mas no mesmo dia de sua prisão Vladimir Herzog foi assassinado sob tortura. E a versão de seus assassinos - de que havia se suicidado – nunca foi aceita por ninguém!
 
A reação do cardeal foi pronta: era preciso uma grande manifestação contra a barbárie que crescia. "Não sei se não é a hora de um protesto mais forte. Quem sabe sair pelas ruas, gritar, protestar contra isso tudo”, disse então.
 
Num encontro com o jornalista Fernando Pacheco Jordão, D. Paulo contou ter sido procurado, na véspera do culto ecumênico realizado em 31 de outubro de 1975, por dois secretários do governo paulista, que tentaram convencê-lo a desistir pois um dirigente católico não podia orar por um suicida. A resposta de D. Paulo foi um corajoso desmentido para a versão difundida pela repressão: “Amanhã eu estarei na Catedral, rezando por Vladimir, porque tenho a plena convicção de que ele não se suicidou”.
 
Aquele foi um ponto alto na cordilheira de cumes elevados que foi a ação de D. Paulo na luta pela democracia e pelos direitos humanos.
 
O culto foi realizado por ele juntamente com D. Helder Câmara, vinte sacerdotes católicos e os rabinos Henry Sobel e Marcelo Rittner.


A voz de d. Paulo ressoou no templo exprimindo o sentimento dos democratas: "Ninguém toca impunemente no homem, que nasceu do coração de Deus, para ser fonte de amor em favor dos demais homens. Desde primeiras páginas da Bíblia Sagrada até a última, Deus faz questão de comunicar constantemente aos homens que é maldito quem mancha suas mãos com o sangue de seu irmão. Nem as feras do Apocalipse hão de cantar vitórias diante de um Deus que confiou aos homens sua própria obra de amor. A liberdade - repito - a liberdade humana nos foi confiada como tarefa fundamental, para preservarmos, todos juntos, a vida do nosso irmão, pela qual somos responsáveis, tanto individual quanto coletivamente". 
 
E disse: “Basta! E hora de se unirem os que ainda querem olhar para os olhos do irmão e ainda querem ser dignos da luz que desvenda a falsidade.”
 
Mas a luta iria ainda ser longa. Em 16 de dezembro de 1976 ocorreu o episódio violento conhecido como “Massacre da Lapa”. D. Paulo tentou informar aos dirigentes do Partido Comunista do Brasil sobre a invasão planejada pela repressão. A informação fora recebida através do cônsul norte-americano em São Paulo e dizia que a sede do PCdoB seria invadida por agentes da repressão. D. Paulo passou a informação a dirigentes partidários a quem tinha acesso. “Mas não consegui salvar todo o grupo", lamentou mais tarde.
 
Em setembro de 1977 ele se encontrava em Roma, e teve que voltar imediatamente. No dia 22 daquele mês a Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo (PUC-SP) foi invadida por policiais e militares para reprimir o Encontro Nacional de Estudantes que lá ocorria. Foi uma afronta direta a sua autoridade eclesiástica. Lá estavam cerca de dois mil estudantes; a ação repressora foi extremamente violenta e mais de 700 estudantes foram presos. D. Paulo reagiu com indignação registrada em sua declaração: “na PUC só se entra prestando exame vestibular, e só se entra na PUC para ajudar o povo e não para destruir as coisas”.


Mais tarde, entre 1979 e 1985 - com o pastor Jaime Wright - foi um dos animadores do projeto Brasil Nunca Mais, que resultou num grande e corajoso livro de denúncia dos crimes da ditadura. O trabalho foi feito sob sigilo, e copiou mais de um milhão de páginas de processos do Superior Tribunal Militar (STM), levadas ao exterior por segurança.
 
Paulo Evaristo Arns, o menino de Forquilha que se tornou a maior autoridade católica de São Paulo, é também osimbolo imorredouro da luta do povo pela democracia e pela justiça social. É nessa condição que mora no coração de todos os democratas!
 
Referências

Folha de S. Paulo. 10 de agosto de 1995.

Jordão, Fernando Pacheco. Dossiê Herzog - Prisāo, Tortura e Morte no Brasil. São Paulo: Global, 2005.

Serbin, Kenneth P. Diálogos na Sombra: Bispos e Militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

Do Portal Vermelho.
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Lideranças relembram papel decisivo de D.Paulo Arns contra a carestia.


Através de d.Paulo, movimento contra a carestia, reprimido pela polícia, faz assembleioa na catedral da Sé em 78.
Através de d.Paulo, movimento contra a carestia, reprimido pela polícia, faz assembleioa na catedral da Sé em 78.



O movimento do custo de vida, que no fim dos setenta ficou conhecido como Movimento Contra a Carestia teve seu embrião nas paróquias das zonas sul e leste da cidade de São Paulo. 

Por volta de 1973, donas de casa e militantes sociais, que participavam dos clubes de mães, organizavam encontros para lutar pela diminuição dos preços dos alimentos de primeira necessidade, como leite, arroz e feijão.

A ex-vereadora e deputada estadual Ana Martins atuou no movimento como coordenadora dos encontros. Na opinião dela, o apoio institucional da igreja católica foi decisivo para o movimento crescer, o que só foi possível pelo compromisso de D. Paulo com a luta popular assim como de outros religiosos como Dom Angélico.

D. Paulo Evaristo foi uma personalidade marcante na luta contra a ditadura militar no Brasil. Homem de ação, questionava os órgãos acerca dos desaparecidos políticos no Brasil e atuava ao lado dos movimentos populares da periferia paulistana.

Compromisso social


Atualmente integrante da União Brasileira de Mulheres (UBM), Ana afirmou que a postura do arcebispo colocou a igreja como instituição a serviço do povo. “A luta do movimento popular quando não tem umas pontas institucionais ela não se sustenta”, explicou.

Ela lembrou que D. Paulo era criticado pelo setor conservador da igreja, o que não o impediu de exercer o compromisso com a luta por justiça social. “Quando lideranças de bairro começaram a ser presas o movimento recorria a d. Paulo e ele ia no exército, ia no Dops, pessoalmente”, recordou Ana.

Carisma 

Nos primeiros anos havia cerca de 400 clubes de mães atuando no movimento do custo de vida na periferia de São Paulo. A cada seis meses eram organizados seminários de formação e em algumas delas D. Paulo estava presente.

“D. Paulo passava, sempre dava uma palavra. Não tinha missa. Ele dava uma palavra e sempre entusiasmava”. Os encontros reuniam em média 300 pessoas debatendo as condições de vida da periferia e formas de melhorar essas condições.

Consciência política

Ana contou que antes da nomeação de D.Paulo como arcebispo as lutas populares não ecoavam na igreja católica em São Paulo. 

“Ele fomentou a criação das comunidades de base, além de discutirem os princípios religiosos, o evangelho, discutia também as condições de vida o que possibilitou um engajamento”. 


A violenta repressão em 78 ao ato na praça da Sé, em São Paulo, organizado pelo movimento contra a carestia ganhou visibilidade na imprensa. Na ocasião, os participantes tentaram se proteger da polícia na catedral onde foi realizada a assembleia, com a anuência de D. Paulo.  

Neide Abati esteve no dia do ato com o marido e os dois filhos pequenos. Ela, que é irmã de Ana Martins, também foi coordenadora de um dos clubes de mães na zona sul. Segundo Neide, D. Paulo era um “refúgio” para os participantes do movimento contra a carestia.

“Estava sempre do nosso lado. Acionava os padres, amigos, advogados. Se os direitos humanos não eram respeitados ele denunciava, avisava os padres com informações, ajudava a achar corpos e aqueles que estavam presos”, lembrou Neide.

Igreja do povo

Para ela a atuação dos padres naquele período era muito avançada. “Avalio como uma igreja da teologia da libertação autêntica e que abria o espaço para toda a visão socialista. Essa visão cristã autêntica não discriminava, era um trabalho avançado que hoje isso andou pra trás”, analisou.

A denúncia feita por D. Paulo da repressão no país revelava a face ditatorial do governo brasileiro. Ao lado dele, outros religiosos como d. Mauro Morelli e o pastor Jaime Wright, mostravam ao mundo que a ditadura reprimia a mobilização popular.

Resistência popular à ditadura

Instrumento importante para despertar a consciência política e a resistência à ditadura, o movimento contra a carestia incorporou outros segmentos de trabalhadores e ganhou contornos nacionais a partir de 76. Incluiu entre as reivindicações a luta pela reforma agrária e a anistia.

Entre as principais ações do movimento estava o abaixo-assinado reivindicando redução dos preços dos alimentos e aumento salarial. Foram recolhidas na ocasião um milhão e 365 mil assinaturas que foram levadas a Brasília ao presidente Ernesto Geisel. A entrega simbólica seria feita na praça da Sé no ato violentamente reprimido em 78 pela ditadura.

De acordo com Neide, o movimento “deu uma força pra classe operária se organizar no seu sindicato”. “Depois o movimento não aparecia mais porque deu origem a outros avanços. É o meu entender, é o entender de quem estava lá”. 

Atualmente Neide é atuante na União Popular de Mulheres, entidade herdeira das lutas do movimento dos clubes de mães do movimento do custo de vida.
  
Do Portal Vermelho.

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