segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O egoísmo da corte corrói a nação. - 'A Justiça no Brasil não é propriamente cega, como mostra o seu símbolo tradicional, mas sim caolha: ela só enxerga os interesses dos oligarcas'.

Reprodução

João Vitor Santos - IHU Online

Pensar noutro Brasil, numa nação mais igualitária requer uma primeira ação, capaz de inspirar todas as outras: abandonar o egoísmo. Essa é a perspectiva trazida pelo jurista Fábio Konder Comparato para de fato conceber um país onde o Estado Democrático de Direito vigore. “Faço um apelo para que se inicie desde logo, e se consolide, um vasto programa de educação ética em todos os níveis, reunindo as principais religiões do Brasil, a fim de que sejamos ao final capazes de rejeitar o egoísmo”, destaca em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Comparato avalia que “a Justiça no Brasil não é propriamente cega, como mostra o seu símbolo tradicional, mas sim caolha: ela só enxerga os interesses dos oligarcas”. E vai além: “a Justiça no Brasil, por si só, não é e nunca foi um superpoder. Mas ela faz parte do grupo minoritário que desde sempre detém o poder soberano. Os mecanismos judiciários hoje existentes não diferem substancialmente dos que sempre existiram”. Para ele, é aí que reside esse espírito egoísta capaz de corroer toda uma nação, porque cada um pensa sempre em se perpetuar ou estar próximo ao poder.

Para Comparato, o Brasil não chega ao status de democracia, pois nesse regime “o povo não é mero figurante do teatro político, mas titular da soberania ou poder supremo”.

E conclui, fazendo um apelo: "Que se inicie desde logo, e se consolide, um vasto programa de educação ética em todos os níveis, reunindo as principais religiões do Brasil, a fim de que sejamos ao final capazes de rejeitar o egoísmo, que tomou conta do nosso povo, e que constitui a alma do capitalismo, como assinalou o Papa Francisco."

Fábio Konder Comparato é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Direito pela Université Paris 1. É professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra e especialista em Filosofia do Direito, Direitos Humanos e Direito Político. É também titular da Medalha Rui Barbosa, conferida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Comparato é autor dos artigos Brasil: A dialética da dissimulaçãoCadernos IHU ideias, nº. 239, e  O poder judiciário no BrasilCadernos IHU ideias, n°.222. 

Comparato é autor dos artigos Brasil: A dialética da dissimulaçãoCadernos IHU ideias, nº. 239, e  O poder judiciário no BrasilCadernos IHU ideias, n°.222. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - A Justiça no Brasil é mesmo cega? Por quê?


Fábio Konder Comparato - Até hoje, desde que os primeiros portugueses aqui aportaram, no início do século XVI, o poder supremo pertence e tem sido exercido, sem descontinuar, por um grupo oligárquico composto de potentados econômicos privados e grandes agentes estatais, sob a égide do capitalismo. O Poder Judiciário, com raras e mui honrosas exceções individuais, sempre fez parte desse grupo oligárquico. Portanto, seria melhor dizer que a Justiça no Brasil não é propriamente cega, como mostra o seu símbolo tradicional, mas sim caolha: ela só enxerga os interesses dos oligarcas.

IHU On-Line - Em que medida se pode afirmar que no Brasil de hoje o Poder Judiciário assume um status de superpoder? Esse status pode inebriar os mecanismos de regulação do Judiciário? Por quê?

Fábio Konder Comparato - A Justiça no Brasil, por si só, não é e nunca foi um superpoder. Mas ela faz parte do grupo minoritário que desde sempre detém o poder soberano. Os mecanismos judiciários hoje existentes não diferem substancialmente dos que sempre existiram.

IHU On-Line – A ministra Cármen Lúcia assume a Suprema Corte nacional com o discurso de que “o cidadão não está satisfeito com o Judiciário e nem o Judiciário está satisfeito com o Judiciário”. Qual a questão de fundo nessa mensagem da nova presidente do Supremo Tribunal federal - STF? Em que sentido pode ser considerada uma autocrítica e como pensar em deixar o cidadão e o próprio Judiciário satisfeitos com o Judiciário?

Fábio Konder Comparato - Gostaria que a ministra Cármen Lúcia reconhecesse publicamente que os ministros do Supremo Tribunal Federal são juridicamente irresponsáveis: eles não respondem perante ninguém por seus atos ou omissões. Gostaria também que, a partir desse reconhecimento, ela tomasse a iniciativa de propor uma só medida, para dar início ao processo de estabelecimento de um Estado de Direito neste País: a mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal (acórdão na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.367/DF), segundo a qual “o Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o STF e seus ministros”.

IHU On-Line - Integrantes do Ministério Público e do Judiciário do estado do Paraná ganharam notoriedade com a Operação Lava Jato, mas também se tornaram notícia ao promoverem uma explosão de processos contra jornalistas que denunciaram esquema de super salários em reportagens. O que esse episódio revela sobre o Judiciário e sobre o Ministério Público no Brasil e a ideia de regulação – ou não regulação – de ambos? E sobre a relação entre imprensa e operadores do Direito, o que evidencia?

Fábio Konder Comparato - O episódio simplesmente revela que a Operação Lava Jato foi arquitetada e posta em execução pelo Judiciário, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal com um objetivo claro: extinguir o perigo político, representado para o atual grupo oligárquico brasileiro por Luiz Inácio Lula da Silva. Em toda a história de nossa mal chamada República (porque a verdadeira, ou seja, aquela concebida pelos romanos, é o regime político em que o bem comum do povo – a res publica – está sempre acima de qualquer interesse particular),Lula foi o primeiro Presidente oriundo da classe proletária e não do grupo oligárquico.

E mais: foi eleito e reeleito para exercer a chefia do Estado, e ao terminar seu segundo mandato contava com 80% de aprovação popular. Só mesmo um idiota era incapaz de perceber que essa situação abria uma possibilidade – enfim! – de se iniciar o processo de substituição da oligarquia pelo verdadeiro regime democrático, no qual ao povo não se reconhece apenas o direito de votar em eleições, mas também e sobretudo:1) o poder de decidir diretamente as grandes questões de interesse nacional (como as mudanças constitucionais, por exemplo); e 2) o poder de exigir seja desde logo iniciado o processo de desmontagem dos mecanismos de desigualdade econômico-social, que condenam à vida de senzala um número sempre mais elevado de pobres.

Mas é preciso não esquecer tampouco que os dois governos de Lula enfraqueceram o superpoder do imperialismo norte-americano, em dois setores-chave: 1) a exploração pela Petrobras das nossas reservas do pré-sal(consideradas entre as maiores do mundo); 2) a união dos Brics, ou seja, de cinco dentre as maiores potências econômicas do mundo: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. É por isso que as más línguas dizem que o início da Operação Lava Jato numa determinada comarca de Curitiba não aconteceu por acaso, pois o Juiz Sérgio Moro, ao que parece, é amigo íntimo de Tio Sam. Em 2007, ele fez, a convite do State Department, um curso de “líderes potenciais” nos Estados Unidos. (Não se pode deixar de indagar: um magistrado é líder de quem?).

IHU On-Line- O que o processo de impeachment de Dilma Rousseff revela sobre a relações políticas no Judiciário brasileiro? E também a partir de todo esse processo e também da Operação Lava Jato, como compreender a ideia de judicialização da política?

Fábio Konder Comparato - O processo de Dilma Rousseff revela que continua em curso um processo, iniciado há mais de quinhentos anos..., não de judicialização da política, mas sim de politização da Justiça.
IHU On-Line - No cenário do Brasil de hoje, o Estado Democrático de Direito é exercido plenamente?

Fábio Konder Comparato - A Constituição Federal de 1988 abre-se com a declaração solene de que “a República Federativa do Brasil [...] é um Estado Democrático de Direito”. Afirmação absurda, pois o Brasil não é e nunca foi uma República. Como já advertira Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil publicada originalmente em 1627, “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada qual do bem particular”. O Brasil tampouco é uma Democracia, na qual, como já disse, o povo não é mero figurante do teatro político, mas titular da soberania ou poder supremo; nem um Estado de Direito, porque (entre outras razões) o tribunal a quem incumbe precipuamente “a guarda da Constituição” (Constituição Federal, art. 102) não está sujeito a controle algum.

IHU On-Line - A Lava Jato é tomada como a panaceia da corrupção nacional, assim como a Operação Mãos Limpas na Itália. Entretanto, o combate à corrupção italiana chegou a um limite. O senhor acredita que essas ações anticorrupção têm uma espécie de prazo de validade? Por quê?

Fábio Konder Comparato - A Operação Mani Pulite não apenas não conseguiu “limpar” a política italiana, como abalou sua economia e pôs no poder durante quatro governos parlamentares “um lídimo varão de Plutarco” (...), denominado Silvio Berlusconi, que se tornou réu em vários processos penais, nos quais, como o nosso Eduardo Cunha (entre outros), não chegou e provavelmente não chegará a ser condenado. É verdade que o juiz Sérgio Moro, ao que parece, não conhece a língua italiana e escreveu sua tese sobre a Operação Mãos Limpas estudando em livros norte-americanos, ou traduzidos em inglês. Mas, enfim, ele poderia talvez se informar bem melhor consultando o Google...

IHU On-line – Deseja acrescentar algo?

Fábio Konder Comparato - Faço um apelo para que se inicie desde logo, e se consolide, um vasto programa de educação ética em todos os níveis, reunindo as principais religiões do Brasil, a fim de que sejamos ao final capazes de rejeitar o egoísmo, que tomou conta do nosso povo, e que constitui a alma do capitalismo, como assinalou o Papa Francisco. Esse generalizado costume de busca do interesse próprio, em detrimento do bem comum do povo, nos foi insuflado desde o início da colonização.

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