terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A repressão que gera o medo.


Foto: Adriano Abreu/Tribuna do Norte.
Por Luis Edmundo Araujo, colunista do Cafezinho.
Depois do choque com a surpresa de sempre nas manchetes sobre a primeira barbárie, em Manaus, logo seguida da segunda, em Roraima, a explosão de violência nos presídios seguia o curso rotineiro do esfriamento de notícias. Dos títulos escandalosos com imagens chocantes passou às chamadas de capa grandes, com foto ainda, e dali às chamadas menores, no canto, caminho certo para a discrição das páginas internas. Mas veio a terceira onda de decapitações na guerra de facções, agora no Rio Grande do Norte, e as manchetes sobre o assunto foram inevitáveis no Estado e na Folha de São Paulo, no Globo também. Em nenhum deles, porém, há espaço para a discussão sobre a “ficção da repressão às drogas”, proposta por Luis Nassif na segunda parte de seu “Xadrez do Brasil na era do narcotráfico”. Mesmo que a Folha enfim ligue os pontos e mostre a relação entre o avanço do PCC e o governo do estado de São Paulo, desde 1995 nas mãos do PSDB, o que predomina na grande mídia é o pedido de sempre por mais repressão, com a “urgência” do título do minieditorial do Globo, na página ao lado da coluna de Ricardo Noblat, que hoje, mais do que ninguém, se encarrega de insuflar o medo.
“Em risco, o estado de direito”. É esse o título da coluna de Noblat que começa lembrando da “segunda-feira 15 de maio de 2006”, quando “São Paulo estava sob o ataque do crime organizado.” O colunista dedica seu texto inteiro à crise nos presídios e num determinado momento alerta que “um documento interno da polícia de São Paulo, que circula desde a semana passada, informa que o PCC distribuiu armas de fogo para desencadear possíveis novos ataques contra a cidade a partir de amanhã.”
Antes disso, no entanto, ele relembra que em 2006 “foram nove dias de terror que deixaram um rastro de 493 mortos, segundo o Instituto Médico-Legal, ou 564, segundo cálculos do sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), feitos com base em boletins de ocorrência”. Noblat junta ainda a informação de que “em um único dia, 105 civis morreram a tiros”, com a afirmação mais adiante de que “o governo nem confirma nem desmente a ameaça”, o que é mais do que suficiente para deixar muita gente preocupada não com o desemprego, com ajuste fiscal, reforma da Previdência, nada dessas coisas, mas com a própria vida.
A guerra das facções explodiu nas cadeias e há bandidos à solta suficientes para aterrorizar a população. Por conta disso, o Globo pede no minieditorial da “urgência”, dentro da matéria da manchete na qual “rebelião com 26 mortos agrava crise no sistema”, que sejam montados o mais rapidamente possível “os 27 centros integrados de segurança, em todos os estados e no Distrito Federal”. Trata-se, segundo o jornal, da mesma medida adotada na tomada do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, em visitas de autoridades e nos grandes eventos, que consiste, basicamente, no aumento do número de policiais nas ruas, em mais repressão.
Combate-se os marginais de sempre sem questionar se eles são de fato, ou não, os grandes responsáveis pelo crime do tráfico de drogas. E em seu xadrez publicado no sábado, Nassif se vale de “conversa com o juiz Luiz Carlos Valois, de Manaus”. O magistrado “chama a atenção para algumas discrepâncias que se tornaram corriqueiras na análise do tráfico” e o jornalista pergunta “como imaginar que organizações criminosas, formadas apenas pelo baixo clero, cujas principais lideranças estão presas, e são moradores de barracos em favelas, possam comandar uma estrutura da dimensão do tráfico de cocaína?”
“No centro de todas as políticas repressivas” de hoje em dia, as “supostas superorganizações criminosas”, para Nassif, “talvez não passem de uma mera ficção, um enredo cômodo, de estruturas criminosas, compostas apenas de peixes miúdos e que têm a particularidade de todos seus líderes estarem presos”. A polícia prende os suspeitos de sempre, o Ministério Público faz a denúncia padrão, “engordam-se as estatísticas de prisões e de população carcerária e alimentam-se as lendas sobre as superquadrilhas”.
Fora isso, há a mãozinha que às vezes dá o Estado, conscientemente ou não, para as organizações criminosas, como a que a Folha revela no pé do texto da chamada para a manchete na qual, “em 3 o massacre do ano, 26 presos morrem no RN”. “Governo de São Paulo ‘exportou’ a facção criminosa PCC com a política de exportar presos para outros estados”. E o subtítulo da manchete do Estadão informa, justamente, que “membros do PCC invadiram penitenciária que abrigava rivais”.
O Primeiro Comando da Capital (PCC) surgiu em São paulo e de lá tem se expandido por todo o País. Os massacres recentes nas prisões nada mais são do que reação de facções rivais como o Comando Vermelho e da Família do Norte ao processo de migração da organização paulista, que segundo a matéria da Folha “foi estimulado irrefletidamente pelo governo paulista que, na tentativa de desarticular o movimento que ganhava força nos presídios do Estado, transferiu em 1998 os seus cabeças para o Paraná, numa operação cercada de discrição”.
“‘O efeito foi o contrário’, diz o promotor Lincoln Gakiya, que atua na Região Oeste do Estado”, e a matéria destaca em negrito, em corpo maior a frase de outro procurador, Márcio Christino, “que desde 1999 se dedica a combater a facção”. “O Estado deveria ter reprimido a facção em vez de transferir o problema para outros lugares. A medida facilitou a expansão do PCC”, afirma ele, enquanto no Estadão um especialista fala em ressocialização no Estadão, mas só na matéria completa da página interna, porque na capa “diz que o governo não tem estratégia para lidar com o caos penitenciário”, e que o “Estado tem de mandar na cadeia e atacar a base econômica das máfias”.
Professor de Direito Penal na USP, ex-secretário nacional Anti-Drogas (no governo FHC) e desembargador aposentado no TJ paulista, Walter Maierovitch disse à coluna “Direto da Fonte”, de Sônia Racy, que “não vê, no modo como o governo Temer aborda o caos nas penitenciárias, razões para otimismo”. “O número um”, segundo Maierovitch, “é resolver o alto porcentual de reincidência do sistema”, que, de acordo com ele, “está na casa dos 80%”
“Muitos presos não voltariam se a pena cumprisse a finalidade de emendar, ressocializar”, admite o desembargador aposentado, sem que nada sobre isso apareça na primeira página do jornal que, em chamada abaixo da manchete, avisa que “no Paraná e em Minas Gerais, 38 fogem de prisões”. Mas presos fora das prisões, mais violência à vista e, logo, mais razões para o medo geral da nação, para as preocupações demonstradas, na coluna de Ricardo Noblat, em “documento assinado por entidades que reúnem veículos de comunicação”
“O que está ameaçado neste momento”, de acordo com o documento, “é a própria sobrevivência da sociedade democrática, porque sua manutenção depende da autoridade, credibilidade e prestígio das suas instituições.” E Noblat arremata dizendo que “era disso que se tratava há 11 anos. É disso, com mais razão, que se trata hoje”. E afirmando isso Noblat ajuda a preparar o terreno para as medidas de sempre, que incluirão certamente mais prisões e mais processos em que, como ressalta Nassif “está tudo padronizado, catalogado, armazenado em docs no computador, bastando apenas trocar o nome do réu a cada processo”.
O jornalista, no seu site, GGN, ressalta que o sistema “só dá trabalho quando algo sai do previsto. Como, por exemplo, a detenção de um piloto de helicóptero, sem saber que pertencia ao filho de um senador da República, amigo e correligionário de um candidato à presidência da República”. Fora isso, tudo segue do mesmo jeito no qual “todos dão o trabalho como concluído, enquanto aumenta exponencialmente o comércio de drogas.”
Então as prisões vão enchendo, enchendo até explodirem na violência explícita que, mesmo tendo como responsáveis governos amigos, não deixam de servir, de algum modo, à grande mídia. “A segurança nacional está em risco, admitiu na última quinta-feira o presidente Michel Temer. O estado de direito, também”, afirma Noblat. E na conclusão de seu texto, ao dizer que “o degradado poder político será uma presa fácil para as 27 facções criminosas disseminadas pelo país”, o colunista completa o quadro atual brasileiro em que a segurança nacional e o estado de direito estão ameaçados, e a pergunta é o que mais é preciso, além dessas duas ameaças, para se configurar o estado de exceção.
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