quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Dilma Rousseff no Senado francês: 'Brasil mergulha no estado de exceção' - A senadores franceses e representantes da sociedade civil, a ex-presidenta explicou o processo de 'enquadramento econômico e geopolítico do Brasil'

Mídia NINJA

Leneide Duarte-Plon, de Paris*

« A principal causa do golpe foi o enquadramento econômico e geopolítico do Brasil. Ele se deu devido ao fato de termos transformado uma relação que era unilateral - sobretudo Brasil e países desenvolvidos - em uma relação multilateral. Primeiramente, dando importância estratégica à América Latina. É nossa região, são nossos irmãos mais próximos e não era possível que o Brasil se mantivesse de costas para ela. A segunda vertente era a importância da África. O Brasil é o maior país negro fora da África e por isso tínhamos de tecer relações não apenas econômicas e sociais mas também culturais. Fizemos isso tanto com os países de língua portuguesa como com a África do Sul. Além disso, participamos da criação e formação do BRICS – Brasil, Russia, India, China e South Africa ».

Dando continuidade a seu périplo europeu, na terça-feira, 31 de janeiro, a convite da senadora Laurence Cohen (PCF-Partido Comunista Francês) e no contexto do grupo parlamentar de amizade França-Brasil, a presidenta Dilma Rousseff falou no Senado francês a políticos franceses e representantes de movimentos contra o golpe, inclusive o que defende a anulação do Impeachment. O ex-ministro e seu advogado José Eduardo Cardoso acompanhava a ex-presidente, que se esforçou em ser didática num tema tão complexo como a política brasileira.

Logo na apresentação da parte aberta ao público, a senadora Cohen lamentou « o pouco empenho do governo francês na condenação ao golpe de Estado » que o Brasil viveu em 2016. Estavam presentes os senadores comunistas Pierre Laurent (secretário-geral do Partido Comunista Francês), André Chassaigne (PCF), Éric Bocquet (PCF) e o deputado Marc Dollé (PG). 

Da imprensa francesa, apenas o jornal comunista « L’Humanité » estava presente ao encontro, que pareceu mal organizado do ponto de vista de comunicação. A assessoria do Senado ou os próximos de Dilma Rousseff não fizeram muita questão de midiatizar sua passagem por Paris. O que pareceu incompreensível a alguns jornalistas franceses que não estiveram presentes mas tinham interesse em entrevistar a ex-presidente, como soube por um deles, que a procurava no dia seguinte para entrevistá-la para a rádio France Inter.    

Os embaixadores de Cuba, Equador e Venezuela se deslocaram até o Senado para encontrar a presidenta destituída por um golpe soft, típico dos tempos atuais.
 
BRICS 
 
« No período de meu mandato o BRICS criou uma variante de Fundo Monetário Internacional chamado Acordo Contingente de Reservas. Nesse mesmo tempo, meu governo desenvolveu relações mais variadas com os Estados Unidos, com a Europa e Japão, com uma aliança muito significativa com os países emergentes », frisou a ex-presidenta para situar o que chamou de « enquadramento geopolítico » do novo governo.
 
Durante o governo de Dilma Rousseff, não houve afirmação de antagonismo para com nenhum país mas a política externa defendeu o conceito de multilateralidade.
 
« Estou muito preocupada com o que se passa na América Latina. Até 2014, nós andamos contra a corrente. Todos os países da América Latina tiveram melhorias na distribuição de renda e agora constatamos movimentos conservadores. A ironia é que assisti ao impeachment de Lugo no Paraguai durante uma conferência do clima chamada Rio 20 na qual afirmamos que era possível « crescer, incluir e proteger ». Naquele momento soubemos que o Senado também com o apoio do poder Judiciário ameaçava aprovar a destituição de Lugo. Todos os chanceleres do hemisfério Sul foram ao Senado dizer que se isso ocorresse eles iriam alegar a « cláusula democrática ». Eles deram o golpe com o impeachment e nós alegamos a cláusula democrática ».
 
Depois de Lugo em 2012, o Brasil em 2016, seguindo o modelo de golpes soft.
 
« O impeachment passou a ser uma estratégia na América Latina. Quando não se derrota por eleição direta, recorre-se a ele », disse Dilma Rousseff. 
 
Para ela, os conservadores se aproveitam da crise econômica para instituir políticas neoliberais sem valores sociais. Esse processo pode conduzir a um momento bastante grave na América Latina mas também é um momento para afirmar a democracia. 
 
« A democracia é nossa bandeira principal porque ela impede que os golpes se deem à margem dos processos de melhoria de vida. Por isso, no Brasil haverá a possibilidade de uma vitória ou de um novo golpe em 2018. Não se sabe por que mecanismos eles agirão até lá. Temos a possibilidade de uma derrota do processo de impeachment, haverá a possibilidade de tentarem uma eleição indireta diante do fato de o presidente ilegítimo ter um desgaste muito grande com as delações que vão ser divulgadas futuramente ».
 
Mais ela também evocou a possibilidade de inviabilizarem a candidatura do ex-presidente Lula. 
 
« Todos esses caminhos confluem para 2018 porque o impeachment é algo muito grave para permitir um acordo por cima, a saída tradicional no Brasil. É necessário um acordo por baixo e esse só é possível com as eleições em que todos participam, quando são colocados projetos diferentes para toda a população escolher ».
 
Na opinião de Dilma Rousseff existe uma « tríade perversa » que afeta os países latinoamericanos mas ela vê o Brasil  como o país mais visado da América Latina. Essa tríade é o neoliberalismo, o aumento das desigualdades e as restrições democráticas. « Ela só pode ser implantada com medidas de exceção e o impeachment talvez tenha sido a maior medida de exceção », avalia. « A questão democrática é hoje fundamental pois sem ela não há nem a questão social nem a questão de soberania ».
 
« O que a sociedade civil pode fazer para restaurar o Estado democrático de direito ? » quis saber uma militante de um dos movimentos franco-brasileiros mais ativos.
 
« Insistir na narrativa. Compreender o que está acontecendo é fundamental para agir. A tradição brasileira é « o golpe no golpe », como em dezembro de 1968, com o fechamento total. A emenda constitucional que colocou um teto de gastos por 20 anos é o exemplo mais puro de como o neoliberalismo se casa com o estado de exceção. Congelar por 20 anos em termos reais o gasto em ciência, tecnologia, segurança, educação, saúde e liberar o gasto em pagamento de juro é claramente a apropriação do orçamento por uma política neoliberal. Fazê-lo por 20 anos é passar por cima de 5 presidentes, portanto de 5 processos eleitorais, de 5 manifestações previstas na Constituição para decidir o programa de governo a ser adotado. O orçamento público é a peça central do processo eleitoral em qualquer país democrático. O que fizeram colocando na Constituição que por 5 mandatos o presidente a ser eleito não vai decidir nada é algo que afronta a Constituição e avança o Estado de exceção sobre a democracia ». 
 
Dilma Rousseff vê claramente um processo de perda de direitos e de avanço da ilegalidade. Cabe aos movimentos sociais, aos partidos políticos e aos cidadãos protestar contra isso.
 
Protagonismo da mídia no golpe
 
A um doutorando brasileiro que a interrogou sobre o papel da mídia no Brasil e seu protagonismo no golpe, Dilma Rousseff respondeu, lembrando que em sua campanha eleitoral propôs a regulamentação econômica da mídia :
 
« Não se trata de controlar a mídia mas o caráter centralizador dos meios de comunicação que levam a expressar uma opinião única ». Ela lembrou que até pouco tempo o Jornal Nacional era visto por 70% dos telespectadores. 
 
« A mídia faz questão de tentar confundir controle de conteúdo com regulamentação econômica », enfatizou a presidenta. 
 
Os meios de comunicação tentaram levar o público a pensar que a regulamentação econômica feriria a liberdade de imprensa, « o que seria anti-democrático ». Ela explicou como o deputado Eduardo Cunha entravou o processo de votação dessas reformas, necessárias ao bom funcionamento de uma democracia.
 
« Esse processo mostrou que no Brasil é necessário antes que tudo uma reforma política para evitar a fragmentação política que leva ao impasse qualquer tentativa de reforma ».
 
* Leneide Duarte-Plon é autora de « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado » (Editora Civilização Brasileira, 2016)».
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