sábado, 25 de novembro de 2017

Pós-democracias no sul global e a melancólica desdemocratização no Brasil contemporâneo.

Pós-democracias no sul global e a melancólica desdemocratização no Brasil contemporâneo
Imagem: Edward Biberman/Conspiração (1955)





Em 2016, o controverso e duvidoso impeachment de Dilma Rousseff institucionalizou o mergulho em um profundo processo de desdemocratização no Brasil. Do ponto de vista internacional, isso representou uma das primeiras inflexões pós-democráticas no sul global; regionalmente, sinalizou o esgotamento dos regimes pós-neoliberais, somando-se ao caso paraguaio de ruptura democrática por dentro de suas próprias instituições.
Nacionalmente, a dinâmica de desdemocratização em curso sugere um momento de transição política[1], marcado pela suspensão do tempo político e pela incerteza das regras mais básicas do seu jogo institucional. Dessa perspectiva, o Brasil recupera e revigora o histórico enredo latino-americano dos golpes contra a democracia no século XX, ainda que desta vez sem o protagonismo militar. Obviamente, esse processo não se anuncia como tal, piorando a angústia diante da pergunta ainda não respondida: afinal, para qual regime político caminha o Brasil?
Uma pista pode ser encontrada na literatura internacional sobre pós-democracia e desdemocratização, dividida em duas linhas principais. Uma primeira, de caráter mais filosófico[2], concentra-se na desconstituição e desagregação do campo político. Argumenta-se que isso está relacionado com a eliminação do conflito pelo discurso neoliberal, que tornou os princípios do consenso, da neutralidade e da técnica hegemônicos para a condução eficiente dos governos (governança).
De outra parte, o desaparecimento do povo e a dissolução de sua soberania como principal fundamento democrático constitui “a democracia sem demos”, ocorrendo por dentro das próprias instituições democráticas e possibilitando o esvaziamento da democracia sem sua extinção formal[3].
A segunda vertente dialoga, complementa e expande esse diagnóstico ao trabalhar a autofagia que o neoliberalismo econômico global constantemente promove sobre as democracias liberais nacionais que lhe deram guarida[4].
Assim, o divórcio entre democracia e neoliberalismo escancara a disputa entre a política e a economia, o povo e as elites, o nacional e o global.
A realidade pós-democrática está intimamente relacionada com a privatização do poder político nacional pelo poder econômico internacional[5], desautorizando e invalidando o princípio da soberania popular. A noção de uma “racionalidade neoliberal”[6] passa a ser empregada para descrever a expansão da lógica econômica neoliberal, concorrencial e competitiva, para os múltiplos domínios da vida social – inclusive, a política.
Os sujeitos políticos produzidos a partir desse cenário são tocados não somente pelo desinteresse, desconfiança e apatia políticas, como também pelo individualismo, consumismo e depressão. A desesperança política, a preguiça intelectual, o elogio à ignorância e a ode ao anti-intelectualismo[7]se tornam elementos fundamentais para o crescimento da intolerância e da violência.
Negacionismo, ocultismo e falsificação histórica são elementos presentes nos discursos públicos anti-humanistas de ódio correntes na lógica da pós-verdade que desinforma, confunde e embaraça. E, o anti-liberalismo começa a significar também anti-democracia, na medida em que a própria construção da hegemonia democrática ocidental esteve condicionada pelo seu necessário atrelamento com o (neo)liberalismo, ao longo do século XX.
A racionalidade neoliberal conjugada à racionalidade neoconservadora promovem um processo de canibalismo[8] em relação à versão mais igualitária do liberalismo, responsável pela introdução da preocupação com as desigualdades no debate liberal desde os anos 1970[9].
No horizonte, um futuro distópico se apresenta com o crescimento do fundamentalismo ou totalitarismo neoliberal, cuja privatização radical da vida face à desconstituição também radical do público, enfrenta alternativas de resistências muito residuais, quando não cooptáveis.
O Brasil atual tem apresentado o conjunto das características mais importantes dos fenômenos contemporâneos de desdemocratização e da ordem pós-democrática[10]. Esse diagnóstico parece ser o mais adequado para caracterizar o colapso democrático nacional. É preciso, contudo, fazer algumas observações e reservas para o enquadramento e o encaixe do país nesse rótulo.
A primeira tem a ver com o caráter anglo-eurocêntrico da literatura sobre as pós-democracias, ainda que alguns autores dispensem a necessidade de geopolitizar esse debate[11]. A segunda tem a ver com o passado latino-americano e brasileiro de conhecidas interrupções democráticas, ante ameaças para sua realização ou aprofundamento[12].
Ao representar o sul global no debate das pós-democracias, o Brasil insere outras ordens de violência e desigualdade promovidas pelo estado colonial, imperial e pós-colonial, cujo maior e mais autêntico período democrático foi rompido em 2016 (o regime político de 1946-1964 pode ser considerado uma semidemocracia, com amparo na literatura internacional e latino-americanista[13]).
Esta leitura parece ser fundamental porque é ela que permite a introdução da importância da experiência e do contexto, prudência metodológica básica para qualquer exercício de análise de conjuntura ou comparação em ciência política.
Em outras palavras: a trajetória do capitalismo, do (neo)liberalismo e da democracia foi a mesma nos países que hoje compõe o sistema internacional?
Basicamente, o entendimento sobre a pós-democracia como consequência do canibalismo entre os princípios liberais na política e na economia já não ocorreu de certa maneira nos países pós-coloniais? Esse núcleo argumentativo, se assim o foi, não necessariamente pode ser estendido aos países cuja posição histórica no passado colonial era francamente desfavorável e um tipo particular de autoritarismo-burocrático já foi criado.
Trata-se somente de considerar que a condição pós-colonial produz outros tipos de capitalismo (dependentes), (neo)liberalismo e democracia, o que pode afetar em uma transposição acrítica ou pouco cuidadosa do diagnóstico das pós-democracias para o sul.
Interessante é observar que ao longo do século XX, a literatura hegemônica da ciência política delimitou e restringiu aquilo que competiria à disciplina discutir e à democracia ser. Tratou-se de firmar a política como um domínio autônomo e específico, pouco permeável a dinâmicas estranhas ou externas. A democracia, por sua vez, deveria sempre ser pensada a partir de uma definição exclusivamente “política”, sendo pouco razoável a introdução de elementos exógenos que desconfigurassem a disciplina e seu campo acadêmico.
Até os dias de hoje, isso significa que elementos históricos estruturais (como desigualdade e violência) ou mais conjunturais (como desemprego e analfabetismo) pouco afetaria a dinâmica e o funcionamento das democracias. Dessa perspectiva, as interpelações por uma definição mais social e substancial de democracia são vistas pejorativamente ou associadas ao populismo, entendido pelo senso-comum como simples demagogia.
A discussão sobre incompatibilidade entre capitalismo financeiro e democracia representativa é autorizada na medida em que os centros começam a viver, pela primeira vez, os velhos problemas das periferias[14]. Isso insere uma outra ordem de preocupação à problemática da democracia, legitimando exercícios semelhantes: quando um continente (América Latina) responde a 42% dos homicídios por arma de fogo do mundo é possível falar em “democracia”[15]? Regimes democráticos não deveriam também estabelecer um patamar mínimo de desigualdade, violência, desemprego e violação aos direitos humanos? Afinal, podemos falar em “pós-democracia”em contextos onde a própria noção de democracia esteve em grande parte ameaçada pelo conluio das elites econômicas e políticas?
Por suas contradições históricas, o liberalismo que se desenvolveu nos países empobrecidos pouco apostou na democracia como seu par indispensável. A ruptura com ordens alheias e caducas (império e escravidão, no caso do Brasil) pouco significou para a auto-realização da libertação, autonomia e soberania popular em um registro republicano.
Autoritarismo e liberalismo conviveram relativamente bem na América Latina e no Brasil, em ambíguo e constante flerte junto ao Estado. Ainda assim, a disputa democrática nunca pôde dele prescindir, tanto no sul quanto no norte.
O sequestro do estado e da democracia pelo capitalismo, em suma, parece ser uma dinâmica não tão nova ou desconhecida pelos países não centrais.
Leituras que apostam nas continuidades e repetições históricas, contudo, não deveriam desprezar a busca das novidades presentes neste novo ciclo global de desdemocratização e ascensão do autoritarismo, no qual o Brasil também se insere. Além do caso brasileiro, no ano de 2016,mais três acontecimentos importantes foram capazes de questionar os limites da democracia representativa, liberal e ocidental em outras partes do mundo.
Na Inglaterra, um plebiscito demonstrou a preferência majoritária dos ingleses pela saída da União Europeia; na Colômbia, o referendo pelo acordo de paz com as FARC foi rejeitado pela maioria; nos Estados Unidos, uma vitória inesperada elegeu o empresário Donald Trump para a presidência da maior potência mundial. No mundo globalizado e neoliberal, essas três consultas populares sinalizaram uma rejeição ao multiculturalismo, à integração regional e à tolerância aos “outros”, alertando que as condições de emergência dos discursos fascistas são gestadas nas brechas dos discursos democráticos liberais.
A combinação desses elementos caminha para a conformação ainda difusa de um projeto político que autoriza racionalmente a entrada da irracionalidade para a eliminação do outro no jogo político, nas ruas e no cotidiano.
No Brasil, o avanço da desdemocratização também caminha com a radicalização do anti-humanismo contra a vida dos outros.
A equivalência da política à corrupção é um dos discursos generalizados que trabalha para a destruição da democracia, afastando as pessoas da política e produzindo um sentimento de rejeição aos partidos políticos, à classe política e às instituições políticas.
Da maneira como se tem posto nos últimos quinze anos, a aversão discursiva à corrupção tem se transformado em a versão à política e à própria democracia. Quando combinado ao discurso de ódio, o discurso anticorrupção sinaliza que é capaz de suportar o sacrifício da democracia e apoiar a eliminação do “outro corrupto” da vida política, em uma clara distorção do objetivo básico do combate à corrupção – ou seja, o reforço dos princípios republicano e democrático de controle pela soberania popular.
O Brasil demonstrou ao mundo que as agendas neoliberal e neoconservadora, quando contrariadas e aliadas, são capazes de produzir uma ruptura democrática com aparência democrática.
A acomodação de candidatos presidenciais potencialmente neofascistas em cenários (pós)democráticos escancara definitivamente o maior limite da democracia representativa liberal ocidental, prenunciando talvez seu decadente e deprimente fim.
Luciana Ballestrin é Professora Adjunta IV de Ciência Política, Curso de Relações Internacionais, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Universidade Federal de Pelotas. 
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