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Por Piero Leirner, para o Duplo Expresso
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Um Caminhão de Intervenções
Gastei umas boas horas, entre ontem e hoje, vendo um monte de coisas que estão disponíveis sobre “Caminhões”. Fiz uma breve estatística que englobou notícias, reportagens, opiniões, vídeos. Queria ver, afinal, se a tese de Breno Altman (opiniões), sobre a diversidade do movimento e defesa dele poderia ser contestada. Não, e sim. Vou começar pelo “não”, mas já alerto que estatisticamente há mais argumentos para o “sim”.
Altman está certo: o movimento é ultra diverso; provavelmente tem gente de várias tendências, entre os 2 milhões de caminhoneiros; quase todos são explorados; não se pode desprezar uma força que conecta todo setor produtivo; de algumas formas eles estão abrindo a brecha para que as pessoas olhem como a Petrobras foi esculhambada pelo PSDB (sim, pelo setor PSDBista do Putsch da Cervejaria de Temer & cia.). Agora, o que vi, e qualquer um pode ver?
Não sei o quanto o material que caiu na minha mão é enviesado, mas ele se baseou em TV, Facebook, Youtube, jornais e blogs. Já posso adiantar que a amostragem é desigual, mas isso pode ser interpretado. Desigual como?
80% do que está aparecendo para mim vem de material coletado no Sul e Sudeste, e nesse último especialmente em SP. Na minha contabilidade, que pode estar um pouco errada para mais ou menos, vi uns 72 vídeos, que variavam entre vídeos de pontos de bloqueio com “lideranças” a vídeos de trechos inteiros de estrada com a fila de caminhões. Foi o que aguentei, tamanha a mesmice. Vamos lá.
Dos 72, 59 eram do sul e sudeste. 8 eram do nordeste, 5 de goiás + entorno do DF.
Desses 59 do S e SE, em 54 se via pelo menos uma placa escrita “intervenção militar”. Isso também apareceu nos de GO e DF, e muito menos no NE. Agora cedo, por exemplo, na Golpenews, numa fila de uns 10 Km da Régis (BR116, trecho SP-PR), contei aparecer umas 12 faixas. Isso por si não diz “caminhoneiros são militaristas de direita”. Pode ser que tenha um movimento militarista, digamos, com 1000 pessoas, que tenha ido aos bloqueios e colocado as faixas. Com anuência dos caminhoneiros. O que achei particularmente interessante é, na verdade, como o caráter regional que tem operado dois vetores políticos opostos no Brasil desde 2014 se cristalizou também nesse movimento que estamos vendo essa semana.
Em algumas reportagens, como por exemplo uma que saiu na Piauí feita a partir de grupos de WhatsApp, também se sobressaltam “lideranças” do Sul e SP, com especial atenção a um tal empresário de transportes cujos mais de 600 caminhões sempre estão por aí, um tal Dalçoquio. Outro vídeo desse sujeito mostra ele esbravejando contra “professores comunistas” de uma Federal, reverenciando Pinochet, e por aí vai. Ele é de Santa Catarina, e pelo que me chegou, os pontos do Brasil que mais “colaram” nos protestos de caminhoneiros foram justamente lá (particularmente Joinville, mas também outras) e no RS.
Desculpem bater nessa tecla de novo, mas acho bastante sugestivo que a extrema-direita no Brasil esteja muito mais organizada no Sul e a partir do Sul, que em outros lugares. Para mim, esses movimentos começam como tendências que se projetam a prazos entre médio e longo na história desde 1988. Basta lembrar que o RS foi o primeiro mais à esquerda, e depois foi invertendo o vetor. É possível que essa onda conservadora que traçou um paralelo no trópico de capricórnio, que ficou evidente na eleição de 2014, daqui a pouco suba, e movimento arrefeça em direção ao polo sul.
O que eu acho mais interessante nesses movimentos são certas coincidências nada desprezíveis. Eu colocaria duas na lista, só para especular, sem nenhuma conclusão definitiva.
A primeira, como já disse em outra postagem, é a reação “Gaúcha (lato senso)” ao MST, à ideia radical de defesa da propriedade, que se acentua de maneira mais intensa quando falamos de propriedade da terra. Mas também isso sempre foi bastante explorado, inclusive para a propriedade urbana: quem se lembra da campanha de 1989, quando começaram a espalhar que Lula obrigaria todo mundo “hospedar” 6 famílias de nordestinos em suas casas? A ligação MST (e agora MTST & afins) + um pavor comunista sempre foi realizada, e isso finalmente foi transferido para a ideia de que o Estado é um agente que opera nesse vetor. Algo como “comunismo = estado”. Para esses red necks brazukas isso simplesmente oferece um extra-potencial de engate na pauta “anti-imposto”, que agora, junto com a ideia de privatização da Petrobras, passa a englobar também o setor de transportes e a crise da gasolina. No meu entendimento, é aí que o setor de transportes encontrou um oásis de entendimento num protesto anti-governo: podem ter certeza que não é só baixar os impostos do diesel, é também liquidar a Estatal o mais rápido possível. É essa maluquice que permite que os caminhoneiros comecem a acusar Temer de “comunista”, e cristalizam a ideia de que se, afinal, ele era vice de Dilma, então esse é um plano de continuidade, não de ruptura. Por isso, mais do que tudo, o PT não consegue achar uma mínima brecha para entrar em sintonia com o que está acontecendo.
A segunda coincidência vem do fato de que um dos maiores contingentes do Exército, se não me engano o segundo maior, está localizado no RS. Especialmente da Cavalaria, a mais “tradicionalista” das Armas. Mourão e sua turma de conspiradores são do RS. Etchegoyen e sua tática de manipulação de Temer é do RS. Há um conjunto de institutos e associações que juntam principalmente professores, advogados e militares que ficam no RS (note-se que a Marinha e a Aeronáutica não andam distribuindo tuítes à vontade por aí). Não é difícil perceber por que a capilaridade que isso tudo gera, especialmente no interior do RS, vai de encontro e passa a andar de mãos dadas com o setor Agro, e agora com a adesão do setor Trans. Aliás, hoje não há dois setores mais dependentes um do outro que esses.
Nesse sentido, essas duas coincidências se casam com uma noção ancestral de que, enfim, o Estado deve se resumir à segurança. Este é mais um indício de por que haver setores militares que parecem ter jogado às favas a ideia de um domínio nacional sobre a cadeia do Petróleo, da Engenharia Pesada, da Energia, do Setor Nuclear: trata-se de trocar a ideia de que o estado possui o monopólio da violência legítima pela ideia de que o monopólio da violência legítima possui o Estado. Já imaginaram um Estado do tamanho do Brasil, com uma única preocupação, a segurança? O orçamento que teria? Pois é, é essa fala de Bolsonaro que está capturando um monte de gente…
Não custa especular mais um pouco, mas também me parece é que esse caldo narrativo difuso, centrado sobretudo na ideia de “imposto zero”, é o que capturou a classe média coxinha em defesa “a princípio” do movimento dos caminhoneiros. Numa aposta arriscada, embora eu não goste muito de fazer previsões, acho que se a greve dos petroleiros de fato acontecer e o governo mandar o Exército descer a borracha, veremos a galera, e os próprios caminhoneiros, aplaudir de pé. Não sei por que, mas nessa meleca toda, a única coisa que me fez algum sentido para juntar esses cacos foi aquela frase do Chico em Bye-Bye Brasil: “Bom mesmo é ter um Caminhão”.
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Áudio do depoimento de Jacqueline Carrijo, auditora fiscal do trabalho com atuação junto à categoria dos caminhoneiros:
Transcrição do áudio:
Boa noite a todos. Bom, eu decidi gravar esse áudio nesse grupo para explicar um pouco o esforço da auditoria fiscal do trabalho e a minha posição em relação ao movimento, né, dos caminhoneiros. Desde 2010 eu estou coordenadora desse setor no estado de Goiás e desde 2010, nós temos realizado rotineiramente blitz, feito flagrantes, operações especiais nas estradas com o único objetivo de salvar vidas. Para quem não me conhece, eu tenho mais de vinte anos de carreira na auditoria fiscal e já fiz de tudo, já trabalhei na rural, já fiz outros setores econômicos. Atualmente, eu estou coordenadora da Saúde do Transporte e assumi também a Segurança Pública. Os trabalhadores do setor de transportes estão entre aqueles que têm as piores jornadas de trabalho, eu estou falando de 18, 30, 40 horas, falta de descanso semanal, mensal, em um trabalho que eu identifico como perigoso, em um ambiente de trabalho que não dá para controlar, que é o trânsito. Em outros setores econômicos, nós trabalhamos com programas de prevenção de acidentes, mas são ambiente contidos, né, já em espaços determinados. Já no trânsito, isso não acontece. Quem trabalha no trânsito sabe que tem que conviver com o acidente de trânsito, com essas ocorrências, tem que conviver com assalto, tem que conviver com a falta de policiamento, com buraco, com animal na pista, com bicicleta, com pedestres, com carro grande e pequeno, com falta de sinalização… Então, o ambiente de trabalho do caminhoneiro, do motorista profissional no Brasil é muito duro, é um ambiente muito agressivo. E, eu falo isso abertamente, isso tudo acontece por conta de descaso, né? Há muito descaso, sim, por parte dos governantes em relação a esse setor. Trabalhadores sofrem, empresários sérios sofrem, comunidade sofre, sociedade sofre. A quantidade de acidentes no trânsito só aumenta. “Ah, mas você não tem como provar que esse acidente do trabalho…”. Vai ver o seguro do DPVAT, não precisa ser um grande crítico, especialista na área para ver. Basta abrir o jornal todo dia e você vai ver ali ó: do moto frete, motoboy, moto táxi, do ônibus pequeno, grande, transporte rodoviário, de carga, todos os tipos… você vê acidente no Brasil inteiro e acidentes de grandes proporções, inclusive. A última análise que a gente fez aqui, não tem nem três meses, morreram nove pessoas. Essa é a característica desse ambiente de trabalho: quando acontece o acidente do trabalho, morre trabalhador e morrem usuários do sistema. O último aqui, morreram nove. Morreu o motorista do ônibus e morreram oito passageiros, bateu de frente com uma carreta. Esses trabalhadores, com certeza, eles enfrentam dificuldades diárias que impactam diretamente na própria sobrevivência. As relações de trabalho, as condições de trabalho da grande maioria dos trabalhadores desse setor são relações, são condições de trabalho ameaçadoras da vida… esses excessos de jornada de trabalho para conseguir ganhar um pouco. Eu digo pouco, porque há uma carga tributária pesadíssima, há a corrupção, a ineficiência pública, né? A gente paga imposto e não vê isso na malha rodoviária, você não vê isso, não sente essa segurança pública e os motoristas profissionais, nas estradas, mais ainda. Então, eles têm que pagar os impostos, eles têm que pagar o combustível, eles têm que pagar a manutenção do veículo, eles têm que comprar, fazer a troca de veículos, porque um veículo velho isso implica em mais gasto com manutenção. Mas, como comprar um novo, se você não tem incentivos, nem dinheiro? Não sobra. Mal está sobrando para comer, mal está sobrando para família. Essa é a realidade. Na estrada, suas condições de alimentação, de repouso são péssimas. Está passada a hora de se discutir a questão de implantação de outros modais, né? Nós vivemos em um país transcontinental. E aí? Vai ficar fazendo um único modal, sendo ele o prevalente? E o aquaviário? E o ferroviário? Por que é que não dá para investir nesses outros? Não vai faltar emprego para ninguém, gente. Não falta. Os postos de trabalho você movimenta, entendeu? Nós, que trabalhamos no trabalho, no mundo do trabalho, nas organizações de trabalho, conhecendo os modelos de gestão, novas tecnologias de gestão, a gente sabe que os postos se movimentam, entendeu? Não vai faltar trabalho para ninguém. E, com certeza, isso aí impactará na melhoria das condições de trabalho do pessoal do transporte rodoviário com relação aos acidentes. Isso diminuirá assustadoramente os acidentes de trânsito. Gente, o Brasil tem a maior quarta malha rodoviária do mundo, um índice de acidentalidade que é comparado às mortes em conflito, guerra. Nós temos mortos, aqui no Brasil, mais de 40 mil por ano no trânsito. Grande parte dos acidentes no trânsito que acontece, grande parte, sem medo de errar, que mais de 50% aí envolve motoristas profissionais. E a associação desses problemas todos, dessas más condições do trabalho potencializam a ocorrência desses acidentes. É uma categoria muito sofrida, uma categoria profissional muito trabalhadora, muito, muito. Esse pessoal trabalha loucamente para cumprir com seus contratos com os passageiros, cumprir com os contratos comerciais, né? Não só para garantir o cumprimento desses contratos, mas no nosso trabalho na estrada, conversando com os motoristas, a gente percebe esse compromisso como a sociedade, de entregar a medicação, de entregar a carne, de entregar o hortifruti. “Olha vai faltar comida, vai faltar remédio”. Essa preocupação com o outro a gente ouve isso de muitos, mas muitos… eu tenho centenas de declarações nesse sentido.
Ah, e tem uma parte disso tudo que é muito sensível, que são as famílias dos motoristas. É fato flagrado, condenado por nós, um esforço muito grande para corrigir isso aí também, né, o quanto essas jornadas de trabalho, o quanto essa má organização do trabalho sequestra o trabalhador e faz com que ele não tenha liberdades. Entre elas, de estar, de cuidar da própria família. Então, infelizmente, são vários também depoimentos, que eu tenho dos motoristas, nesse sentido que, em razão das ausências, o casamento acabou, os relacionamentos acabaram, né? Então, ou seja, o sequestro provocado pelo trabalho, em razão dessas jornadas de trabalho estendidas, sem repouso, sem folga e, veja bem, com possibilidades de ficar com a sua família, isso tem provocado desagregação familiar e isso aí impacta diretamente nas futuras gerações. São muitas, muitas crianças que estão crescendo sem pais. Falo de homens, porque a grande maioria são homens, mas há mulheres no setor também… motoristas, mas são poucas. A grande maioria é de homens mesmo. Então, é uma outra triste realidade. E o sofrimento mental que isso provoca, esse distanciamento, essa desconexão que é feita da pessoa da sua família, da sua religião, da sua escola, da sua faculdade. Aliás, a pessoa que vive, que é um profissional do volante, que vive essa vida louca que é nessa organização do trabalho, com essas jornadas de trabalho tão estendidas, ela perde a condição, a possibilidade de melhorar de vida, porque ela não tem condições mais de estudar, ela não tem como mais entrar em uma sala de aula, de frequentar cursos. Não, a vida dela é estar enclausurada em uma boleia de caminhão. E isso é muito triste, porque todos nós temos sonhos, temos perspectivas, temos vontades de melhorar isso, aquilo, crescer nisso ou aquilo, até mesmo para desenvolver dentro da própria atividade, crescer no empreendimento, se tornar um empreendedor, um empresário, ou seja o que for. Mas, essas possibilidades com relação a grande maioria desses trabalhadores, ela fica muito reduzida pela incapacidade que eles têm de estudar, de participar de capacitações. Olha só, eu comuniquei aqui, conversei a respeito de um trabalho que eu estou fazendo aqui e vou trabalhar, no final de semana todo, para segunda-feira, né, com 150 CNPJs. Esses aí, nós estamos chamando os proprietários, os sócios proprietários, membros de CIPA e SESMT, para falar, porque essas empresas estão sob nossa auditoria. Então, pediram, estavam com muitas dúvidas, pediram esclarecimentos. Beleza, eu notifiquei todo mundo e vou dar os esclarecimentos coletivamente, porque com o nosso corpo fiscal muito reduzido, eu não tenho tempo de tirar esclarecimentos um por um. Mas, não tem problema não, reúno todo mundo em um auditório, converso com todo mundo, tiro as dúvidas, levo os nossos peritos e dou esses esclarecimentos. Mas, e para os trabalhadores? Como alcançar os trabalhadores desse setor? Só na pista. E é conversando com eles, nas estradas, que nós tratamos essas questões, que nós conhecemos a realidade deles, conhecemos os sonhos, as expectativas, as frustrações, os desencantos, as angústias, isso tudo em depoimento. Eles prestam depoimentos para nós, nas estradas. E aqueles trabalhadores, que não tem condição de trafegabilidade, porque nós provamos através das análises dos discos dos tacógrafos certificados e em perfeita funcionalidade, que eles não têm condição de trafegabilidade, porque estão cansados, estão exaustos, a gente já interdita o trabalhador para ele dormir, para ele descansar para, só depois de 24 horas de repouso, ele continuar a viagem. Mas, essa falta de possibilidade desses trabalhadores de frequentarem escola, igreja, participarem da criação dos filhos, como eu falei, o sequestro em razão do trabalho, infelizmente é fato e rotina na vida desses profissionais. Como mudar isso? Aí, tem que se mexer no sistema. Tem que se mexer no que eu falei antes, né, de melhorar essas condições de trabalho e mexer nessa política toda do transporte no Brasil, do transporte rodoviário, no trânsito ferroviário, aquaviário e por aí vai. Mexer nos nossos portos, né? Melhorar tudo isso aí, né? Uma política séria para o setor. Carga Tributária justa, combatendo a corrupção, a ineficiência pública e por aí vai. Então, é por isso que eu falo, o problema, as más condições de trabalho desses profissionais são inúmeras e elas acontecem tudo ao mesmo tempo. Então, por isso é que esse grito de socorro chegou a essas proporções, em razão de todas essas não conformidades que agridem diariamente essas pessoas. É isso.
Para movimentar toda a riqueza humana e material do Brasil eles se submetem a toda e qualquer condição de trabalho. Não é uma opção, entendeu? Acabam que precisam se submeter, né? E isso por conta do descaso. Descaso político com esse setor. Como autoridade do trabalho e de estar nesse meio já há algum tempo, eu faço aqui uma declaração que é triste, mas que não é única dos trabalhadores desse setor. Eles estão pedindo socorro. Com essa movimentação, é isso que está acontecendo: eles estão pedindo socorro, porque não aguentam mais. Estão no limite e esperavam que as autoridades brasileiras tomassem uma atitude com relação aos descasos dos governos, governos e desgovernos, porque esse problema, ele vem se arrastando há décadas, basta ver nossos portos. A precariedade, a falta de investimento em tecnologia em nosso portuário é um problema muito sério, afeta diretamente todo o transporte rodoviário nacional… a malha rodoviária brasileira abandonada com tanto problema que tem, uma ou outra que é melhor, mas olha o tamanho do Brasil. Conversa com os caminhoneiros que andam na região Norte, que andam aqui na região Centro Oeste, Sudeste, os riscos… Não tem local no Brasil que você fala assim “Não, aqui a trafegabilidade é segura, aqui eu não corro risco nenhum, aqui eu vou ter um local para me alimentar corretamente, para dormir adequadamente, que não seja na boleia do caminhão”, porque a boleia do caminhão não é alojamento. A pessoa tem que dormir em paz, tranquila, sem ser incomodada para recuperar suas condições físicas e mentais. Como eu disse, o trabalho executado pelos motoristas é trabalho de precisão, precisa atenção. A pessoa tem que ficar, no período em que ela estiver ao volante, ela tem que estar em estado de alerta. Agora, como estar em estado de alerta, como conseguir ter as reações certas, na hora em que precisa, se você está fadigado, se você está exausto, se você não come direito? Porque, é isso, né, tem gente que acha que motorista gosta de comer na estrada. Não, motorista como qualquer pessoa, quer um lugar limpo, higiênico, que ofereça alimentação segura, é isso. Motorista também quer um local para repousar adequadamente, onde ele não seja incomodado por prostituta, traficante, pedintes, onde ele não tenha que ser o vigilante da carga, o vigilante do veículo, porque é isso, né, tem empresa que coloca até grade na porta do caminhão para impedir um assalto. Eu falei assim “Tá impedindo é um resgate do trabalhador. No caso de um acidente, nenhuma equipe de resgate consegue tirar a pessoa da boleia do caminhão, porque tem uma grade”. Está protegendo de quem? Não é assim que você protege as pessoas. Ah, e tem a questão das seguradoras também, o custo que muitos trabalhadores têm que ter para pagar as seguradoras, porque já que não tem segurança pública nas estradas, tem que também gastar com segurança pública. Então, ele tem que pagar caminhão, tem que pagar pneu, manutenção, etc., etc. etc., tem que pagar pela segurança pública, que o Estado não garante pra ele. Então, ele tem que pagar também. E aí vem os problemas, questões não controláveis, vamos dizer assim “Ah, mas isso é o problema do dólar, né?
Petróleo a cotação é internacional”. Tá, tudo bem. Mas, nós moramos em um país transcontinental com mais de 200 milhões de habitantes, riquíssimo aqui, então uma carga tributária pesada, uma arrecadação que é grande. Então, assim, em tese, não deveríamos sofrer tanto com as oscilações internacionais, como outros países passam por essas oscilações também e não ficam nessa tormenta. Então, falta gestão, falta política séria aplicada, falta atenção especial do governo para com esses trabalhadores, para com os empresários do setor, povo sério do setor. Tem muita gente séria no setor. E falta responsabilidade com a sociedade, porque é a mesma coisa que acontece na educação pública, na saúde pública, na segurança pública… transporte é a mesma coisa. Áreas essenciais são todas iguais, né? Se não houver um tratamento sério, planejado, executado pelo Estado, vira essa bagunça e essas situações de abandono, de sentimento assim de revolta que a gente ouve, que eu tenho recebido no meu WhatsApp, depoimentos de motoristas do Brasil inteiro, sofrendo também com essa história toda, reivindicando, estão firmes, mas que não deixam de ficar preocupados com tudo isso. Como eu falei, são pessoas responsáveis. Essa é a minha impressão com base nos depoimentos que eu colho desses trabalhadores nas estradas. Enfim, o que precisa ser feito é tratar essas questões com seriedade, com responsabilidade, com planejamento, muito planejamento, execução séria, combate à corrupção, combate à ineficiência pública e os motoristas profissionais têm o meu apoio. Eu concordo com o movimento pelo fato de que as reivindicações, que têm sido feitas em cima das melhorias das condições de trabalho, são verdadeiras. É isso que a gente flagra, realmente, na malha rodoviária, tá? Eu quero dizer que não há exagero e, para quem não conhece, eu garanto: a realidade é bem pior.
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Depoimento de Larissa Jacheta Riberti, no seu mural no Facebook (25/mai/2018), que também tem familiaridade com a categoria dos caminhoneiros:
Tem ao menos seis anos que colaboro com um jornal de caminhoneiros e não me arrisquei a fazer nenhuma análise sobre a recente greve da categoria. Mas muitas opiniões, sobretudo de “esquerda” proferidas nessa rede social (ninguém se importa, na verdade) me geraram um incômodo. Por isso, me arrisco agora a escrever algumas pontuações sobre a greve dos caminhoneiros, lembrando que, dessa vez, muita gente perguntou, rsrsrs.
1) A greve começou como um movimento puxado pela CNTA, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos. A convocação da paralisação se deu após encaminhamento de ofício ao governo federal em 15 de maio, solicitando atendimento de demandas urgentes antes da instalação de uma mesa de negociação. As urgências eram: o congelamento do preço do Diesel, pelo prazo necessário para a discussão sobre benefício fiscal que reduzisse o custo do combustível para os transportadores (empresas e caminhoneiros); e fim da cobrança dos pedágios sobre eixos suspensos, que ainda está acontecendo em rodovias de caráter estadual, conforme compromisso assumido pela lei 13.103/2015, conhecida também como Lei do Motorista.
2) No ofício encaminhado pela CNTA se fala na deflagração de uma paralisação em 21 de maio, caso não fossem atendidos os pedidos da Confederação. Também se explicita o apoio de 120 entidades representativas, mas não se esclarece se essas organizações são sindicatos patronais ou de autônomos.
3) A paralisação prevista para 21 de maio aconteceu, já que o governo se recusou a negociar com a CNTA e com demais entidades. Ao que consta nos comunicados de imprensa do organismo, também estavam na pauta discussões como o marco regulatório dos transportes e a questão da “reoneração da folha de pagamento”
4) Abro parênteses para o tema: desde 2011, a discussão da desoneração da folha de pagamento vem acontecendo no Brasil com vistas a garantir a geração de empregos. Nos anos seguintes ela foi ampliada para outros setores, como o do transporte rodoviário de cargas. Com a desoneração os patrões tem a possibilidade de escolher a forma mais “vantajosa” de pagar a contribuição previdenciária, recolhendo 20% sobre os pagamentos dos funcionários e contribuintes individuais (sócios e autônomos) ou recolhendo uma alíquota sobre a receita bruta (cujo percentual variava entre diferentes setores da economia, no caso do TRC é de 1,5 a 2%). No ano passado, o governo Temer, através do Ministro da Fazendo, Henrique Meirelles, anunciou a reoneração da folha de pagamento com a justificativa de que era necessário reajustar “as contas” da União. Atualmente, a ampliação da reoneração da folha de pagamento está sendo discutida no âmbito do TRC.
5) Com a mobilização que se potencializou em 21 de maio, uma série de pautas foram levadas para as “estradas”. Dentre os mobilizados nesse primeiro momento estavam autônomos e motoristas contratados. As informações que nos chegam é a de que eles estão deixando passar as cargas perecíveis e os medicamentos e os itens considerados de primeira necessidade.
6) A paralisação continuou e ganhou adesão das transportadoras que prometeram não onerar os funcionários nem realizar cortes salariais ou demissões por causa da greve. Afinal de contas, a redução do preço do Diesel também é do interesse da classe patronal.
7) A greve conta com grande apoio nacional, porque a alta do preço dos combustíveis afeta não só a prestação de serviços, mas a vida de grande parte dos brasileiros.
Os sindicatos estão batendo cabeça. De um lado, muitas federações e entidades soltaram nota dizendo que não apoiam a greve e que ela tem características de lockout justamente porque a pauta tem sido capitaneada pelos setores empresariais em nome dos seus interesses. Do outro lado, existem sindicatos de autônomos, como a própria CNTA, o Sindicam de Santos que puxou a paralisação na região do porto, e agora a Abcam, que recentemente se mobilizou na negociação, apoiando o movimento. Segundo nota, o presidente da Abcam esteve em Brasília hoje e depois de uma reunião frustrada disse que a greve dos caminhoneiros continua. A reunião tinha como objetivo negociar a redução da tributação em cima dos combustíveis.
Esse é o cenário geral da mobilização. Ela é composta por uma série de segmentos que conformam o TRC. E, obviamente, suscita algumas questões:
1) Existe uma clara apropriação da pauta dos caminhoneiros por parte da classe empresarial que exerce maior influência nas negociações. Isso significa que, por mais que a greve seja legítima, pode acabar resultando num “tiro pela culatra” a depender dos rumos tomados na resolução entre as partes e as lideranças.
2) Não existe uma pauta unificada, o movimento não é homogêneo, nem do ponto de vista social, nem do ponto de vista ideológico. Existe um grupo de caminhoneiros bolsonaristas, outros que são partidários de uma intervenção militar, outros pedem Diretas Já e Lula Livre. Ou seja, é um movimento canalizado principalmente, pela insatisfação em relação ao preço do Diesel.
3) Em função da grande complexidade e fragilidade das lideranças sindicais de autônomos, o movimento carece de uma representatividade que possa assegurar as demandas da classe trabalhadora, bem como que possa evitar o crescimento dos discursos conservadores e das práticas autoritárias. Enquanto isso, os sindicatos patronais acabam por exercer maior influência, determinando os caminhos da negociação e o teor das reivindicações.
4) Isso se faz notar, por exemplo, no tipo de reivindicação expressada por grande parte dos caminhoneiros que é a redução da tributação em cima do preço do combustível. Ora, todos nós sabemos que o cerne do problema é a nova política de preços adotada pelo governo Temer e pela Petrobras, que atualmente é presidida por Pedro Parente.
5) Novo parênteses sobre o tema: desde o ano passado, a Petrobras adotou uma nova política de preços, determinando o preço do petróleo em relação à oscilação internacional do dólar. Na época, esse tipo de política foi aplaudida pelo mercado internacional, que viu grande vantagem na venda do combustível refinado para o Brasil. Aqui dentro, segundo relatório da Associação de Engenheiros da Petrobras, a nova política de preços revela o entreguismo da atual presidência da empresa e governo Temer, que busca sucatear as refinarias nacionais dando prioridade para a importação do combustível. Tudo isso foi justificado na época com o argumento que era necessário ajustar as contas da Petrobras e passar confiança aos investidores internacionais.
6) É verdade, portanto, que o movimento em si tem uma percepção um pouco equivocada da principal razão do aumento dos combustíveis, mas isso não significa que toda classe dos caminhoneiros não faça essa relação clara entre o problema da política de preços da Petrobras e o aumento dos combustíveis.
7) De fato, portanto, o grande problema nesse momento é saber quem serão as pessoas a sentar nas mesas de negociação. De um lado, existe uma legítima expressão da classe trabalhadora em defesa das suas condições de trabalho e dos seus meios de produção. O aumento do Diesel é um duro golpe entre os caminhoneiros autônomos e a reivindicação da sua redução, seja pela eliminação dos tributos, seja pelo questionamento da política de preços da Petrobras, é legítima e deve ser comemorada.
A questão fundamental agora é saber o que o governo vai barganhar na negociação. Retomo, então, a questão da reoneração da folha de pagamento. O governo já disse que haverá uma reoneração da folha e esse é um dos meios de captação de recursos caso haja fim do Pis/Cofins incidindo sobre os combustíveis. Na prática, porem, a reoneração pode ter um impacto sobre os empregos dos próprios caminhoneiros, resultando em demissões.
9) Se houver o fim da tributação no Diesel, conforme inclusão do relator, Orlando Silva (PCdoB/SP), na Medida Provisória, de parágrafo que exclui a tributação, a classe trabalhadora e toda sociedade serão impactadas. Afinal de contas, com redução de receita, haverá, consequentemente, um corte no repasse da verba para a seguridade social, previdência, saúde, etc.
Considerando tudo o que foi dito, expresso meu incomodo com análises e percepções simplistas da esquerda, ou de pessoas que se dizem da esquerda, sobre o movimento. Locaute virou doce na boca dos analistas de facebook. Porque não atende à nossa noção de “movimento” ideal, os caminhoneiros que legitimamente se mobilizaram em nome da redução do preço do diesel estão sendo taxados de vendidos e cooptados, como uma massa amorfa preparada para ser manipulada.
Os “puristas” não entendem a complexidade da categoria, e tampouco atentam para a dificuldade que é promover a mobilização ampla desses trabalhadores, tendo em vista não só a precarização extrema à qual estão sujeitos, mas também à realidade itinerante de seu trabalho. Soma-se a isso o duro golpe que atualmente foi proferido contra as entidades sindicais menores de autônomos, com o fim da obrigatoriedade do imposto sindical. Sinto dizer aos colegas acadêmicos, portanto, que nem sempre nossos modelos de análise social se aplicam a realidade. Não se trata de uma disputa entre o bem e o mau; nem de um movimento totalmente cooptável e ilegítimo; uma massa manipulável e “bobinha”. Por outro lado, também não é um movimento cujos protagonistas tem uma consciência enquanto classe, enquanto categoria. Não é unificado, as pautas são heterogêneas e também voláteis. Por tudo isso, parte desses trabalhadores expressam reações conservadores e, alguns grupos, visões extremistas sobre a política e suas estratégias de luta.
Nada disso, ao meu ver, torna ilegítima a mobilização. Pelo contrário, é um convite para que busquemos entender mais das categorias sociais e para que aceitemos que as mobilizações sociais nem sempre atendem ao nosso critério idealizado de pauta, objetivo e organização.
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TERRAS ALTAS DA MANTIQUEIRA = ALAGOA - AIURUOCA - DELFIM MOREIRA - ITAMONTE - ITANHANDU - MARMELÓPOLIS - PASSA QUATRO - POUSO ALTO - SÃO SEBASTIÃO DO RIO VERDE - VIRGÍNIA.
segunda-feira, 28 de maio de 2018
Caminhão de intervenções: a geleia ideológica dos caminhoneiros e os militares.
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