quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Tolerância e Democracia. - A tolerância com as diferenças e o respeito às divergências devem sim, na democracia, serem cultivadas. Mas não podemos admitir que em nome da tolerância o próprio Estado Democrático seja afrontado.

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1- É possível dialogar com um fascista?
No dia 24 de janeiro último, a filósofa e escritora Marcia Tiburi desistiu de participar de um programa de entrevista na rádio Guaíba assim que descobriu que outro convidado era Kim Kataguiri, líder do Movimento Brasil Livre (MBL). Ambos se encontravam em Porto Alegre por ocasião do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que, por unanimidade, negou provimento ao recurso da defesa e, ainda, aumentou a pena de Lula. A filósofa Marcia Tiburi, autora de vários livros, entre os quais “Como Conversar com um Fascista” e “O Ridículo Político”, foi surpreendida pela presença de Kim no estúdio. Tiburi não fora avisada pelo jornalista Juremir Machado da Silva, apresentador do programa, da presença do líder do MBL.

Marcia Tiburi, em carta aberta a Juremir, assim se pronunciou sobre o acontecimento:

Tenho a minha trajetória marcada tanto por uma produção teórica quanto por uma prática de lutar contra o empobrecimento da linguagem, a demonização de pessoas, os discursos vazios, a transformação da informação em mercadoria espetacularizada, os shows de horrores em que se transformaram a grande maioria dos programas nos meios de comunicação de massa.  

Ao longo da minha vida me neguei poucas vezes a participar de debates. Sempre que o fiz, foi por uma questão de coerência. Tenho o direito de não legitimar como interlocutores pessoas que agem com má fé contra a inteligência do povo brasileiro ao mesmo tempo em que exploram a ignorância, o racismo, o sexismo e outros preconceitos introjetados em parcela da população.

Por essa razão, ontem tive de me retirar do teu programa. Confesso que senti medo: medo de que no Brasil, após o golpe midiático-empresarial-judicial, não exista mais espaço para debater ideias.[1]  

O episódio acima nos leva a uma importante e necessária reflexão: Em nome da democracia devemos tolerar, até mesmo, atitudes fascistas? 

2- Brevíssimas considerações sobre democracia:
Como é cediço, foi a Grécia, o berço da democracia direta, especialmente Atenas, "onde o povo, reunido no Ágora, para o exercício direto e imediato do poder político, transformava a praça pública no grande recinto da nação"[2]. Lá, os cidadãos reunidos em Assembleias populares deliberavam sobre assuntos do governo, declaravam a guerra, estabeleciam a paz, escolhiam magistrados, funcionários públicos e até julgavam determinados crimes. O Ágora na cidade grega fazia o papel correspondente do Parlamento nos tempos modernos.

É evidente que a democracia na Antiguidade Clássica – “mais bela lição moral de civismo que a civilização clássica legou aos povos ocidentais” [3] – não se sustentou no Estado moderno, contudo, é inegável sua contribuição para a evolução da própria democracia. 

A democracia clássica, síntese do pensamento liberal, consagrou a soberania popular, a divisão de poderes do Estado, a limitação constitucional à representação política e a declaração dos direitos e garantias individuais. 

Para José Afonso da Silva, o conceito que se deve a Lincoln, de que “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”, apesar de suas limitações é na essência correto. As limitações, segundo o constitucionalista, estão, notadamente, em se pretender definir democracia como “governo”, quando ela é mais do que isso: “é regime, forma de vida e, principalmente, processo”.[4]

Atualmente, observa Bobbio, “democracia” é um termo que tem uma conotação fortemente positiva. Não há regime, até mesmo o mais autocrático, que não deseje ou goste de ser chamado de democrático. [5]

O Brasil, como é sabido, consagrou na Constituição da República o Estado Democrático de Direito tendo como fundamento: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (art. 1º, incisos I, II, III, IV e V da CR). Sendo que, de acordo com a Constituição, todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição (Parágrafo único da CR).

A soberania popular, conforme a Constituição, será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

“I- plebiscito; II- referendo; III- iniciativa popular” (art. 14, I, II e III da CR).

Conjugando o parágrafo único do artigo 1º da CR com o artigo 14 e seus incisos, chegamos à conclusão que o Brasil adotou como forma de governo a chamada “democracia semidireta”. Posto que, plebiscito, referendo e iniciativa popular são institutos da democracia semidireta. 

Contudo, verificamos que, embora a democracia semidireta esteja consagrada na Constituição, a mesma quase nunca saiu do papel, reservando-se ao povo brasileiro tão somente o direito ao voto, próprio de uma democracia exclusivamente representativa. 

Como bem observa Rubens R. R. Casara[6]  – em Estado Pós-democrático – “A democracia, em sua concepção material, para além da participação popular na tomada das decisões políticas, exige, por um lado, a existências de limites ao exercício do poder e, por outro, a concretização dos direitos fundamentais”. Mais adiante, Casara salienta que, “para os ‘oprimidos’ e ‘indesejáveis’, o Estado Democrático de Direito nunca passou de uma aspiração”.

É certo que a neófita democracia (formal) brasileira ––  em sentido material não é possível falar em democracia no Brasil – atravessa, após duas décadas de ditadura militar (1964-1985), uma de suas maiores crises, notadamente, em razão do golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, eleita com mais de 54 milhões de votos, sem que tenha sido comprovada a prática de crime de responsabilidade. De igual modo, a condenação e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ocupa o primeiro lugar nas intenções de voto para presidente da República, em todas as pesquisas de opinião, revela que a vontade popular e a liberdade política, baldrames da democracia, vêm sendo carcomidas por interesses escusos.

3- Tolerância e democracia:
Deborah Christina Antunes, em artigo sobre a “Tolerância e democracia hoje: o discurso de deputado em defesa da posição conservadora”, observa que:

A forma democrática da qual se fala hoje busca manter dentro de suas fronteiras a diversidade cultural, religiosa e também de modos de vida individuais. Defende-se a possibilidade de convivência harmônica de visões divergentes de homem, de sociedade e de mundo – desde as radicalmente liberais, às mais sectárias e conservadoras. O discurso da tolerância – que inicialmente carregava o “nobre objetivo” de permitir ao diferente existir, concedendo-lhe o direito de circular pelos espaços outrora destinados apenas às classes dominantes – revela sua natureza verdadeira e seus limites ao colocar sob o mesmo denominador a luta pela liberdade e a expressão da barbárie. Atualmente, tão preocupantes quanto aqueles nichos de violência, é a forma como a democracia permite a expressão e a perpetuação do discurso e da ação antidemocráticos – daquilo que, por dentro, corrói a própria ideia de democracia. Exemplos atuais dessa expressão não são difíceis ou raros. Durante as eleições para a Presidência da República do Brasil de 2014, diversos foram os modos como defensores, tanto do partido do governo, quanto do partido da oposição, expressaram seus ressentimentos. Exemplo é a jovem que publicou em suas redes sociais apoio ao voto censitário, argumentando que pessoas “pobres” e “analfabetas” e prioritariamente aquelas moradoras dos Estados do Norte e do Nordeste brasileiros não deveriam ter direito ao voto.[7]

É evidente que os regimes que se pretendem democráticos – em nome dos direitos humanos - devem ter como regra o respeito as diferenças individuais e sociais. As diferenças de opinião, de manifestação e de expressão, bem como a diversidade cultural, política e religiosa, devem, também, ser asseguradas pelo Estado democrático.

Assim, em uma verdadeira democracia (formal e material) as cidadãs e os cidadão têm o direito de não serem privadas e privados da liberdade individual; de manifestar livremente seu pensamento; de professar ou não uma religião; da inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da honra; da inviolabilidade da casa; do livre exercício do trabalho; de se associar-se livremente etc.

A democracia, ao que tudo indica, leva a tolerância. A tolerância com as diferenças e divergências são próprias de regimes democráticos que têm na pluralidade um de seus principais pilares. Porém, quando as ditas “diferenças” e “divergências” são incompatíveis com a própria democracia – que como asseverou Winton Churchill “é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais” – não parece possível sustentar, para aqueles que se opõem a própria democracia e os valores do Estado Constitucional, tolerância. 

Em ensaio sobre a “tolerância repressiva”, o sociólogo e filósofo alemão Herbert Marcuse (1898-1979) salienta que:

A incerteza quanto às possibilidades desta distinção não anula a sua objetividade histórica, mas precisa de liberdade de pensamento e de expressão como condições prévias para encontrar o caminho para a liberdade – necessita de tolerância. Mas essa tolerância não pode ser indiscriminada e idêntica no que diz respeito ao conteúdo da expressão, nem da palavra ou da ação; não pode proteger palavras falsas e ações erradas que claramente contradizem e contrariam as possibilidades de libertação. Essa tolerância indiscriminada é justificada em debates inofensivos, em conversa, em disputas académicas; é essencial na investigação científica, na religião íntima. Mas a sociedade não pode ser indiscriminatória onde a pacificação da existência, onde a sua liberdade e felicidade estão em jogo: aqui, certas coisas não pode ser ditas, certas ideias não podem ser expressas, certas orientações políticas não pode ser sugeridas, certos comportamentos não pode ser permitidos sem fazer da tolerância um instrumento para a manutenção da submissão abjeta.[8] 

Mais adiante, explica o filósofo:

A tolerância libertadora, então, significaria intolerância face a movimentos de Direita e tolerância face a movimentos da Esquerda. [...] Em diferentes circunstâncias passadas, discursos dos líderes Fascistas e Nazis foram o prólogo imediato aos massacres. A distância tornou-se muito curta entre a propaganda e a ação, entre a organização e mobilização das pessoas. Mas a disseminação das palavras poderia ter sido contida antes que fosse tarde demais: se a tolerância democrática tivesse sido retirada quando os futuros líderes começaram a sua campanha, a humanidade teria tido a possibilidade de evitar Auschwitz e uma Guerra Mundial. [...]

Embora a tolerância, como dito, seja inerente aos regimes democráticos, não há como admitir, em nome da democracia, um partido nazifascista. De igual modo, não seria possível, em nome da tolerância e da liberdade de expressão, suportar discursos xenófobos, homofóbicos, sexistas e racistas. Discursos que afrontam a dignidade da pessoa humana, postulado do Estado Democrático de Direito, são incompatíveis com a própria democracia.

Com bem apontou a filósofa Marcia Tiburi – na carta citada – “O discurso que leva ao fascismo precisa ser interrompido. Existem limites intransponíveis, sob pena de, disfarçado de democratização, os meios de comunicação contribuírem ainda mais para destruir o que resta da democracia”.[9]

4- Conclusão:
Na democracia comprometida com os valores do Estado Constitucional, que tem como postulado o respeito a dignidade da pessoa humana, em que o ser humano deve, diante de uma concepção kantiana, ser tratado como fim em si mesmo e jamais como meio ou instrumento, não há, definitivamente, lugar para o fascismo. 

A tolerância com as diferenças e o respeito as divergências devem sim, na democracia, serem cultivadas. No entanto, não podemos admitir que em nome da tolerância o próprio Estado Democrático seja afrontado.

Em nome do princípio da dignidade da pessoa humana – princípio de inteligibilidade do conjunto de direitos e garantias fundamentais – as afrontas aos direitos fundamentais não podem ser toleradas, ainda que em nome de uma tolerância democrática, quando o próprio Estado Democrático está sob ataque, correndo o risco de ser aniquilado e sobreposto pelo Estado fascista.

Por tudo, é que os fascistas e os defensores de regimes de exceção e discriminatórios que apregoam a destruição do “inimigo” e do “indesejável”, bem como o desmoronamento do Estado Democrático de Direito, devem ser expurgados da vida pública, sob pena de ruína do próprio Estado Constitucional.

*Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado e Doutor em Ciências Penais (UFMG)

CARTA MAIOR


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