sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Carta de Berlim: Carta aberta ao companheiro e colega Fernando Haddad. E à Manuela.

(Reuters)






Berlim, 15.11.2018, 129º aniversário da nossa República ameaçada.

Caros Haddad e Manuela.

Resolvi escrever para vocês porque me dei conta de que há muitas cartas abertas para cá e para lá, e que eu me lembre agora nenhuma para vocês.

E eu sei como é duro perder uma eleição, ainda mais nesta dimensão de metade de um continente, um terço da América Latina, que é o caso do Brasil.

Há muitas coisas importantes a dizer. Por exemplo: como já ouvi e li, vocês  saíram maiores do que quanto eram na entrada da disputa. Não resta dúvida. Saíram maiores porque combateram o bom combate, com coragem, galhardia, ousadia, elegância, diante de adversários que foram covardes, obtusos, rastaqueras, deselegantes. Sem a timorata fuga dos que se o omitiram ou tardaram na escolha.

Combateram contra forças muito superiores: uma conspirata internacional, fake news, uma mídia mainstream hostil, uma tigrada da toga ávida de demolir a vossa frente política, uma corja de neo fascistas impunes à solta pelas ruas, um empresariado covarde e ávido de dobrar a exploração do povo, amplos setores de classe média e até de gente pobre a se comportar como os conhecidos macaquinhos, tapando os olhos, os ouvidos e a boca e, claro, o nariz, para votar em quem elogiava a tortura, a violência, a ditadura e esnobava os debates.

Assim mesmo, conseguiram quase 50 milhões de votos. Um feito admirável. Um passaporte para o futuro.

É claro que vocês não vão desanimar. O Haddad eu conheci como colega, e sei que não desanima. A Manuela conheci numa entrevista que fiz, para a Carta Maior, em São Paulo, e me encantei com a clareza de suas ideias generosas e o empenho com que as defende. Empenho: isto é diferente do tiroteio de frases mal compostas com que o candidato vencedor vem expondo ao ridículo a posição do Brasil no mundo, agredindo países, programas, organismos internacionais, resoluções da ONU que eu sei que vocês respeitam e promovem. Porque o empenho é uma coisa responsável. E o que o vencedor vem fazendo é o exercício da irresponsabilidade.

Detesto as comparações que situam a Europa (depois de Trump não dá para incluir os Estados Unidos) como algo “superior” ao Brasil, atitude, em geral, de quem adora curtir o transporte público nas metrópoles daqui mas que na nossa terra só quer maior espaço para o seu carrão. Porém devo dizer que por aqui Bolsonaro não se elegeria nem mesmo síndico de massa falida, quanto mais de prédio.

Devo dizer que por aqui a situação, ressalvadas as proporções, também não está fácil. A extrema-direita está acantonada em vários governos: Hungria, Polônia, Áustria, Itália. A direita escancarada dá as cartas em outros: Eslovênia, Eslováquia, República Tcheca, Lituânia, Letônia, Estônia… De um modo geral, a direita vem determinando a pauta política na Europa, inclusive na Alemanha. Os socialistas, social-democratas e verdes estão na defensiva, muitas vezes em crise de identidade. A crise financeira de 2007/2008 entortou ainda mais o espectro político, que já vinha torto desde a rendição dos social-democratas, socialistas e verdes aos princípios do neo-liberalismo ao final do século XX. Temos ensaios de recuperação: Podemos na Espanha, a Geringonça em Portugal, Franciso I no Vaticano, os verdes têm crescido em vários países,  embora venham se mostrando muito permeáveis (demais para meu gosto) a acordos com os partidos de direita, em nome de ascender ao governo. Mas que fazer? O SPD alemão, que se gaba de ser o partido mais antigo da Europa ainda em funcionamento, está reduzido a um puxadinho da União Democrata Cristã da chanceler Angela Merkel. Macron, na França, saiu de um PS tornado exangue pela péssima administração de François Hollande. A social-democracia nórdica soçobrou e se rendeu às iniciativas da direita. Por outro lado, Rússia e China jogam pôker com Trump, que é um jogador destemperado… 

Enfim, estamos numa situação difícil. Mas se algo de novo vai surgir, será daí, destes espaços da América Latina onde a história salta por estertores, arrancos, recua, dá piruetas e se equilibra e desequilibra na corda bamba. Graças a lideranças extemporâneas e surpreendentes, como foi a de Lula, e ainda é. Imaginem: a principal figura da política latino-americana estes num cárcere, injustamente condenado, sem provas de qualquer  espécie de qualquer crime de que seja acusado! Um cara respeitado mundialmente. Não sei se vai ganhar, mas é um forte candidato ao Nobel da Paz - coisa que o governo brasileiro tentaria impedir com todas as suas forças, ainda que no momento paire em nuvem de ridículo, coisa que o futuro governo só fará aumentar. E graças ao sangue novo de vocês, de Boulos, e de outros que se jogam nesta luta valorosa pela ética na política.

O novo governo promete ser uma piada trágica. Ninguém ali está preparado para governar. Nem o presidente e sua prole próxima, nem o astronauta que propagandeia travesseiros, nem o economista que vê o Brasil como um laboratório para retestar teorias pífias e fracassadas ao redor do mundo, nem mesmo o juiz provinciano que digeriu mal teorias alienígenas sobre a desimportância das provas e cometeu toda a sorte de arbitrariedades confessas para atingir seu objetivo… enfim, um cortejo de trapalhadas que produzirão muito mal e dor até que sejam varridas do mapa.

E há vocês, promessas de futuro. Vão em frente. Promovam a união dos democratas. Fujam de debates estéreis, sobre se a frente é popular ou democrática, ou sei lá o que mais, como se fossem coisas excludentes e opostas. Resistam à burocratização partidária, sem renunciar à organização dos partidos, mas com pluralidade e multiplicidade. Percorram o país. Abram-se para uma frente internacional e múltipla. Se preciso for, peçam a bênção do papa. E etc.: vocês sabem melhor do que eu, que fico na arquibancada do jornalismo, na torcida.

Um forte abraço, parabéns.

Flávio

CARTA MAIOR


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