A esquerda brasileira esqueceu a defesa da laicidade no afã de fazer média com os religiosos.
Nossa esquerda é reacionária? Pelo jeito é, a ponto de podermos perguntar se é realmente esquerda ou virou um produto híbrido. Eu já andava desconfiado, mas o assassinato dos caricaturistas do Charlie Hebdo, de policiais e de judeus por fundamentalistas islamitas em Paris, serviu para confirmar. De uma maneira geral, a reação de gente respeitada foi a de que os caricaturistas foram os responsáveis, pois não se cutuca religião com vara curta. O clima é de solidaridade com cheiro de incenso medieval entre membros diversos e mesmo antagônicos de confraria, no caso a confraria dos religiosos, que, no dizer de Gilberto Gil, “acreditam nas coisas lá do céu”.
De minha parte, eu só aceitaria o argumento de que o divino tem de ser respeitado, se em lugar dos três fanáticos com armamento pesado, o próprio Maomé, em pessoa, tivesse entrado na redação e punido os brincalhões com raios celestiais. Como não foi assim, não acredito que os três assassinos tivessem delegação maometana para vingar o profeta. Abrãao, José, Jesus, Maomé todos já morreram e, embora tenham deixado no seu lugar grupos religiosos, fazem parte do domínio do “faz de conta” e seus belos livros devem ser lidos como se lê Grimm, Perrault, Andersen, as fábulas de La Fontaine e as maravilhosas histórias da Mil e Uma Noites. Ou suas versões por Walt Disney e Hollywood.
Não posso entender como marmanjões com títulos universitários, alguns até com formação marxista e até hoje um tanto estalinistas, defendam a mesma ladaínha do Papa populista. Vejam bem, no caso do Papa, risonho e boa gente, é perfeitamente compreensível: durante séculos, os chargistas franceses pegaram no pé da Igreja Católica, isso incluindo envenamentos no Vaticano, o Papa de Avignon, a Papisa, o fascista Pio XII. Não eram ainda Wolinski, Charf, Cabu mas seus antecessores, com desenhos sofisticados a bico de pena. Talvez alguns engraçadinhos tenham sido purificados na fogueira antes de subirem aos céus ou irem arder no inferno, em todo caso, o desrespeito com o Vaticano e o Papa era constante.
De repente, a melhor equipe de caricaturistas da França se cansa do pessoal de batina, das hóstias, rosários, crucifixos e confessionários, para escolher outros temas como judeus e rabinos, mas principalmente o criador da religião em expansão na Europa, Maomé. E, como houve uma fatwa ou condenação à morte, dos colegas dinamarqueses também ligados em Maomé, começaram a dar preferência a esse tema, mesmo porque bastante atual nas lutas políticas francesas, com a família Le Pen querendo botar para fora os emigrantes muçulmanos.
Não se iludam, mesmo os clérigos têm seus defeitos, e o Vaticano suspirou aliviado com essa nova opção do Charlie Hebdo. Porém, com o assassinato da turma do Pasquim francês, surgiu a questão de se pode gozar a cara de religiosos e seus líderes, se isso é ético. O Papa Francisco ou Chico correu atrás dessa oportunidade inesperada para tentar convencer a todos da necessidade de se colocar um basta no humor ferino e blasfemo de alguns hereges iconoclastas caricaturistas. E é claro, o catolicismo fala mais alto nessas horas, Leonardo Boff e o Frei Betoi que o digam.
E como fazem os políticos, o Papa raciocinou: hoje eu apoio os muçulmanos mas amanhã eles nos apoiam e até o evangélicos irão fechar conosco. Mesmo porque corre cada dois anos, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, uma proposta para se considerar delito todo tipo de blasfêmia contra os símbolos religiosos. Na verdade, nos países muçulmanos apoiadores da proposta esse tipo de proibição já existe e pode ser punido com a morte, mas eles gostariam de haver no mundo um consenso, entre as religiões, para que nem o Papa, nem Maomé, nem o Cristo do evangélicos fosse desrespeitado. E a mensagem foi bem recebida – muçulmanos, católicos, evangélicos unidos no mesmo combate da defesa das religiões.
Maravilha, isso mereceria mesmo uma comemoração mundial, do tipo: os homens se unem, com o apoio da ONU, no respeito aos seus símbolos religiosos. Mas o contraponto dessa festa será a censura. Aqui no criticado Ocidente existem algumas coisas exclusivas e uma delas é a liberdade de expressão. E, em pouco tempo, a abertura para se censurar desrespeito às religiões iria incluir outras proibições.
Mas isso meus amigos da “esquerda” brasileira não parecem ver. E, pelo jeito, querem negociar com os evangélicos e a CNBB, numa nova tentativa de política de concessões, à maneira do atual Ministério. Depois do marcha-à-ré na questão do aborto, por que não dizer que a esquerda também não é Charlie e quer o respeito devido às religiões? Isso daria, sem dúvida, votos dos religiosos e faria felizes os amigos iranianos, palestinos do Hamas e os russos, que curtem religião e se enervam com blasfêmias, do tipo daquelas meninas do Pussy Riot. Opção capaz de deixar Marx furioso, assim como todos os pensadores e batalhadores da Renascença, dos Anos Luzes, da Revolução Francesa por certo queimando no fogo do inferno. Outros, incapazes de argumentar, optam por uma fórmula simples: se o Reinado, o Noblat e os ícones da direita são contra o Papa, então sou a favor do Papa. Fórmula utilizada igualmente em outros assuntos, aplicando-se a oposição. Muito simples, mas desprezível.
Rui Martins, jornalista, escritor, editor do Direto da Redação.
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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
Nossa esquerda é reacionária?
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