segunda-feira, 18 de junho de 2018

Mandarins do Serviço Público: o dia em que Confúcio, sem querer, inventou Moro e Dallagnol.




Por Marc Neto, para o Duplo Expresso
  • Aqueles oriundos dos extratos sociais privilegiados obviamente, como na China ancestral, têm acesso à melhor educação desde a pré-escola aos cursos universitários e podem, terminada a graduação nas melhores instituições de ensino, passar anos sem trabalhar. Ora, os concursos para a Magistratura ou para o Ministério Público Federal significam, em média, três a quatro anos de investimento e esforço, pagando cursos e livros e viajando pelo Brasil, em busca dos editais abertos.
  • Desse modo, os concursos públicos para esse novo mandarinato também passaram a ser dominados pelos setores mais altos da classe média, com sua infatigável e ininterrupta vontade de ascensão social, medo das classes trabalhadoras, ignorância da realidade alheia e, obviamente, pela ideologia de classe que recebe desde o berço.
  • Isso também explica por que a perseguição a Lula, ao PT e, de resto, à esquerda, que tem sua legitimidade nas camadas populares. São os principais inimigos, os que organizam politicamente o povo.
  • Fator extra de empoderamento: o Golpe de 2016. Hoje, como em qualquer Estado fascista, o Direito é o que os golpistas dizem que é o Direito. E, nesse curioso golpe, que não foi perfilhado e que foi incapaz de produzir líderes, eles, os novos mandarins, deixaram os bastidores e ocuparam o vácuo deixado. É uma República juristocrática de Mandarins.
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O concurso público para funcionários do Estado não é criação republicana, tampouco ocidental. Foi ideia de Confúcio, que propôs que os cargos estatais fossem ocupados por pessoas selecionadas em exames públicos de conhecimento, independentemente de classe social. Assim, a burocracia passaria a ser composta por aqueles que ele definia como “Homens de Mérito”. Essa burocracia estatal estável, composta por funcionários aprovados nos exames imperiais, chamava-se MandarinatoEla viria a substituir os administradores oriundos da nobreza aristocrática, passando a dividir a administração do Estado Chinês com o Imperador e sua corte por mais de mil anos, até 1905 .
Em 1668, o jesuíta português Gabriel de Magalhães relatou que havia três séries de exames, cada qual dando acesso ao funcionalismo estatal de determinado nível. O primeiro era o exame provincial (Xiangshi), que dava aos aprovados o título de Juren e permitia o acesso ao próximo nível, os exames do ministério (Huishi). Os aprovados nessa segunda fase recebiam o título Gongshi e poderiam fazer os exames do palácio (Dianshi), onde eram sabatinados pelo próprio Imperador. Aprovados nessa última fase, recebiam o título de Jinshi, com acesso aos mais altos cargos da burocracia imperial.
Com o decorrer do tempo, passar no exame imperial e se tornar um funcionário público de elevada posição passou a ser o sonho de todos os chineses, independentemente de classe social. No entanto, os concursos públicos que Confúcio havia idealizado como acessíveis a todos, justamente por visarem a meritocracia através da escolha dos melhores candidatos, eram extremamente complexos e difíceis, sendo composto de exames de conhecimento e de retidão moral, em termos confucianos. Essa extrema dificuldade oportunizou a criação de cursos específicos para os exames imperiais, todos regiamente pagos e a edição de caros livros específicos contendo as matérias exigidas nas provas. E, assim, a meritocracia igualitária idealizada por Confúcio, foi contraditoriamente afastada pelo seu próprio exigente método de escolha, pois nem todos os chineses podiam pagar pela educação exigida para ter sucesso nos exames imperiais.
Como consequência, a aristocracia familiar que, no início, havia cedido lugar ao mandarinato, voltou ao poder pelo simples fato de que eram os únicos que já tinham desde o berço a melhor educação. Diz-se que as crianças chinesas iniciavam a alfabetização aos sete anos e desde essa época já começavam a se preparar para os exames imperiais. Além disso, podiam pagar os cursos e professores necessários para ter acesso aos cargos imperiais. E assim, a busca pela excelência na escolha da burocracia imperial chinesa gerou um sistema injusto onde, mais uma vez, os mais aquinhoados e nascidos em casas nobres eram privilegiados e dirigiam o Império a partir de sua visão de casta e interesses de classe.
Note-se que o estudo intensivo para os exames imperiais, além de privilegiar a classe abastada, não acabava por escolher sumidades morais e intelectuais, mas especialistas em generalidades, uma vez que precisavam estudar todas as matérias, dos Clássicos à caligrafia e às artes marciais.
Essa situação desigual não escapou à percepção dos mais humildes, que também sonhavam atingir o mandarinato. Isso se demonstra pelo fato de que os maiores opositores do Império chinês foram candidatos reprovados nos exames imperiais, como Hong Xiuquan que comandou a Rebelião Tai Ping que quase derrubou a dinastia Qing. Hong Xiuquan conseguiu ser aprovado nos exames iniciais, mas nunca passou nos exames seguintes, nas quatro tentativas que fez. Na terceira vez que foi reprovado, teve um colapso nervoso, do qual emergiu dizendo ser o irmão caçula de Jesus Cristo. Li Chen, também reprovado nos exames imperiais, após isso se tornou conselheiro do líder da revolução que derrubou temporariamente o último Imperador da dinastia Tang, vingou-se contra os que haviam obtido sucesso nos exames, executando trinta altos funcionários civis e jogando seus corpos no rio Amarelo.
Como pode ser percebido, o mandarinato tem seu equivalente nos tempos modernos. E, quando causa surpresa o modo como membros do Ministério Público e do Judiciário atuam, convém lembrar dos mandarins chineses. Os concursos públicos para os cargos jurídicos no Brasil, como acontecia na China Imperial, apenas asseguram a igualdade formal para o ingresso nas carreiras, as quais, sendo excelentemente bem remuneradas, são extremamente atrativas para quem já possui, desde o nascimento, uma situação financeira invejável à maioria do povo.
Aqueles oriundos dos extratos sociais privilegiados obviamente, como na China ancestral, têm acesso à melhor educação desde a pré-escola aos cursos universitários e podem, terminada a graduação nas melhores instituições de ensino, passar anos sem trabalhar. Ora, os concursos para a Magistratura ou para o Ministério Público Federal significam, em média, três a quatro anos de investimento e esforço, pagando cursos e livros e viajando pelo Brasil, em busca dos editais abertos.
Desse modo, os concursos públicos para esse novo mandarinato também passaram a ser dominados pelos setores mais altos da classe média, com sua infatigável e ininterrupta vontade de ascensão social, medo das classes trabalhadoras, ignorância da realidade alheia e, obviamente, pela ideologia de classe que recebe desde o berço. E não se enganem, não há apenas um Moro, um Bretas, um Dallagnol, um Carlos Fernando… eles são muitos e não apenas no Judiciário e no Ministério Público. Há uma legião, muitos ainda nas faculdades ou nos cursos preparatórios, também almejando o mandarinato, não apenas pelos polpudos salários, mas pelo poder real sobre todos, não só sobre o populacho indócil, a malta ignara, que aprenderam a temer e desprezar desde a infância e a tratar como sub-humanos. Para eles, o povo, portanto, o Direito do Inimigo.
Isso também explica por que a perseguição a Lula, ao PT e, de resto, à esquerda, que tem sua legitimidade nas camadas populares. São os principais inimigos, os que organizam politicamente o povo. E isso, o novo mandarinato aprendeu em casa, com a família.
Portanto, ao estupor que causa a atuação desabrida e pouco republicana de Ministros, Procuradores e Juízes, tem resposta no DNA de classe desses novos mandarins, acrescido de um fator extra de empoderamento: o Golpe de 2016. Hoje, como em qualquer Estado fascista, o Direito é o que os golpistas dizem que é o Direito. E, nesse curioso golpe, que não foi perfilhado e que foi incapaz de produzir líderes, eles, os novos mandarins, deixaram os bastidores e ocuparam o vácuo deixado.
É uma República juristocrática de Mandarins.
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Marc Neto é advogado.

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