terça-feira, 5 de julho de 2016

Moro e Carpentier dentro da democracia - Jessé Souza lembra que se quisermos ir além das aparências, devemos ir além do que as instituições 'dizem de si mesmas'.

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Tarso Genro

O admirável livro "O Continente Submerso" (1988) de Leo Gilson Ribeiro, autor que já tinha publicado em 1964, um outro grande livro denominado "Os cronistas do absurdo -Kafka, Brecht, Büchner, Ionesco"-  traz "perfis e depoimentos" de grandes escritores da América Latina, independentemente das suas posições políticas pessoais. São posições verbalizadas ou escritas que -pela sua grandeza literária e humana- de algum modo contribuem para responder a uma pergunta axial, que ainda nos desafia:  "para onde vai a América Latina?". Para onde vai nossa democracia, para onde vão as nossas experiências de luta, até onde nosso continente aguenta a dependência subordinada, gerada por uma dívida pública nascida de décadas de apropriação privada do Estado?

Lá estão Borges, Vargas Llosa, Juan Rulfo, Carpentier, Cabrera Infante, Octávio Paz, Neruda, Manuel Scorza, entre outros grandes do Continente. Livro admirável, porque acima das contingências políticas que viveram cada um desses autores -alguns em conflito com a Revolução Cubana, outros com as ditaduras ou governos oligárquico-autoritários- Leo Gilson conseguiu extrair de cada biografia literária ou de obras desses autores, algo de grandioso para a questão da nossa cultura. E, em consequência, para a questão democrática latino-americana,  que se aguçou fortemente nos últimos 50 anos.

Quando Leo Gilson trata de Alejo Carpentier, depois de referi-lo como um autor que acumula séculos, "talvez milênios mesmo, de cultura" (a semelhança do mexicano Octávio Paz),  lembra uma citação de Goethe, feita por Carpentier (extraída do Fausto) destinada a situar o nascimento recente do continente: "Acabamos de chegar e não sabemos como foi. Não nos pergunteis de onde viemos: baste-nos saber que aqui estamos". E estamos cada vez mais dramaticamente acossados, pelas novas formas de império e por novos protocolos de dominação.

De certa forma, a resposta de Carpentier resume a "questão democrática" que estamos vivendo hoje no Brasil e no Continente. Nos países da América Latina, a crise da democracia -diferentemente dos países que amadureceram revoluções burguesas cujas democracias estão definhando-  expressa-se como verdadeiro parto. É um "nascimento" democrático, em confronto com a decadência definitiva do liberalismo político tardio. Aqui, portanto, não se trata de uma reforma ou do "renascimento" democrático, mas do parto de novas formas democráticas, em condições históricas adversas, dentro de uma revolução que, nos seus lugares de origem,  não renovou nem criou novas instituições em mais de duzentos anos de vida.

Aquela frase de Saint-Just sobre a Revolução Francesa, citada por um personagem de Manoel Scorza, bem serviria para interpretar  o desejo de democracia e de efetividade dos direitos, que permeia a nossa questão democrática: "A Revolução só deve deter-se na felicidade".  Tomando historicamente a felicidade coletiva como "plenitude democrática" (não um remoto socialismo) pode-se dizer que,  enquanto nos países de democracia política madura, o que bloqueia a felicidade é o "ajuste" (que pode ser feito sem alterar as velhas instituições políticas)  aqui, o que bloqueia a democracia é a radicalização da "exceção". Dentro da crise, a "exceção" se completa, para poder promover o "ajuste" por fora da instituições tradicionais do Estado de Direito.

Em 2008 o grande jurista Luigi Ferrajoli  -teórico do direito e da democracia como são os verdadeiros juristas- publicou o seu livro "Democracia e Garantismo" (Editorial Trotta, Madrid), através do qual reúne seu legado teórico e doutrinário, onde constatando a insuficiência da formas jurídicas e políticas atuais do Estado Constitucional, propugna por novas instituições e técnicas de garantia dos direitos fundamentais, "que ainda estamos longe  de ter elaborado e assegurado".  A democracia constitucional, para Ferrajoli, é  fruto de uma mudança radical de paradigmas sobre o papel do direito nos últimos 50 anos, que ainda não tomamos consciência suficientemente. Os dirigentes nacionais e regionais da OAB, especialmente o seu Presidente do Conselho Federal, em regra deveriam ser "apenados" por assembleias gerais de advogados, nos Estados, para uma leitura compulsória desta obra.

A "exceção" no Brasil, por exemplo -poderiam se dar conta eles- se infiltra no tecido constitucional com um apoio social bastante amplo, pelos "resultados" que oferece, imediatamente, na luta contra a corrupção. O seu objeto, porém,  não é a luta contra a corrupção, mas estabelecer um nexo, entre a corrupção e a necessidade do "ajuste",  ele mesmo a suprema corrupção das funções do públicas do Estado. E o "ajuste" não pode ser feito sem esta decomposição, que passa pela manutenção do sistema político, ofertante gracioso de  uma Confederação de Investigados e Denunciados, dispostos -pela sua situação penal precária- a cumprirem a trajetória do "ajuste".

Isso, certamente, não poderia ser feito sem um controle da opinião pela mídia oligopolizada, numa democracia em que as amplas massas de cidadãos e famílias estão no limite da pobreza e, se perderem algo do seu poder aquisitivo, chegam à miséria. A mídia oligopolizada, antiesquerda, antiPT e antidemocrática, encarrega-se de instalar um Tribunal Político, que precede as condenações e absolvições penais, as prisões e conduções coercitivas e a manutenção indefinida de prisões preventivas. Estas, mantidas sem condenação -para buscar delações premiadas e manipuladas- são o atestado mais evidente de uma "exceção", não juridicamente declarada, mas de fato instalada.

O que deve nos opor à "Síndrome de Moro", que afeta o nosso Estado Constitucional, não é o seu resultado contingente de ataque à corrupção, que é sempre bem-vindo e sempre terá alguns resultados positivos, ainda que limitados a um período  e a algumas facções sociais e políticas. O que deve nos opor a esta doença da democracia, semelhante ao que ocorreu na República de Weimar, que inclusive se fez à luz da indiferença de determinados setores democráticos covardes é a sua manipulação, falta de profundidade e instrumentalização para fins políticos imediatos e eleitoreiros. 

Na verdade, estes processos anticorrupção estão sendo feitos dentro da dialética "amigo-inimigo" (da formulação pró-nazista de Schmit),  distantes das formulações de Ferrajoli, pela instalação de novos paradigmas para afirmação dos direitos fundamentais. Por isso é golpe, não revolução moralizadora, o que está ocorrendo no país. E este, assim deve ser tratado,  pelos verdadeiros democratas, socialistas, centristas democráticos ou quaisquer outros que defendem  -para hoje-  a democracia social, contra a barbárie neoliberal.  Jessé Souza, num livro que celebra a obra e a vida do grande Raymundo Faoro  -que felizmente não acompanha os procedimentos dos seus sucessores atuais-  lembra que, se quisermos ir além das aparências, devemos ir além do que as instituições "dizem de si mesmas".  E o que a democracia diz de "si mesma", hoje, é decidido não pelo contencioso político democrático, na esfera pública da Constituição, mas  pelo oligopólio da mídia, que percorre o caminho do "ajuste", como uma versão do "Sendero Luminoso" do rentismo liberal.

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